quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

Adeus e obrigado

Estavam 6 graus e o telefone ainda acrescentava "but feels like 4". Como se eu soubesse distinguir entre 4 e 6 graus - abaixo de 15, é nórdico, ofensivo, uma injustiça!, bom para ficar em casa. Mas jogava o Benfica e eu não podia acomodar-me no sofá, enrolado em mantas, com os pés quentinhos. Não desta vez. Mais do que entrar no 2015 Benfiquista com o pé direito, eu queria sair do 2014 com as mãos juntas, em aplauso e em sinal de agradecimento.

2014 deu-me o Benfica que eu imaginava há anos, uma espécie de abstracção fantasiosa do Benfica com o qual me deparava todas as épocas. Cresci a ouvir que "dantes a gente limpava tudo e ainda brilhávamos na Europa" e a ver-nos ficar em 3.º, em 2.º, uma vez em 6.º, a ganhar uma coisinha aqui, outra ali - conquistas separadas por anos de secura.

Não tive outro remédio senão agasalhar-me bem e chegar à roulote a tempo de arrefecer ainda mais as mãos com duas cervejas. Sagres. Nestas ocasiões, não há margem para errar. Não fui sozinho - e este tipo de fidelidade, a roçar a insanidade (4 graus: se eu deixasse sopa na varanda, ela não azedava de um dia para o outro), esquece facilmente as dificuldades e transforma-se em romaria de prazer quando temos companhia.

Já no Estádio, sentámo-nos por trás do banco dos nossos, a contar ver de perto a segunda parte. Mas o Nacional armou-se em Sporting e virou o campo ao contrário: a baliza grande calhou-nos logo na primeira metade. Melhor assim, vimos de perto e com detalhe o golo do magnífico Jonas (Jonas, essa inesperada bênção que nos chegou ao plantel não sei como, mas pela qual também estou imensamente grato).

O jogo foi aborrecido, quase sempre mal jogado. Gostei, uma vez mais, do Cristante - prefiro-o ao Samaris - e estou a aprender a apreciar o César. De resto, a equipa parece abalada pelas ausências, o jogo está tremido. Mas as vitórias surgem, o talento de Jonas e de Júlio César acabam por fazer diferença na hora da verdade. Às vezes, tem de ser assim.

Quando o jogo acabou, aplaudi com gosto. Aplaudi muito mais do que aqueles 90 minutos esforçados pobrezinhos. Aplaudi o campeonato, a Taça e a Taça da Liga, aplaudi Jesus por tudo o que tem feito, mesmo quando às vezes faz as coisas ao contrário do que eu lhe digo. Aplaudi também os que partiram, Eusébio e Coluna, e que não assistiram ao brilhante 2014.

Antes de irmos embora, parámos de novo na roulote. A rua estava quase vazia e não havia sinal de azáfama junto à chapa das bifanas ou às torneiras de imperial. 2015 não poderá ser igual, já se sabe. Mas estaremos lá para ver, mesmo que esteja frio.

domingo, 14 de dezembro de 2014

Relato de uma manhã de Outono

O plano "vou aproveitar para dormir até tarde" foi prematuramente abortado quando a cachorra decidiu acordar e acordar-me às oito da manhã. Aparentemente, estava aflita: não parava de saltar, de ganir, de raspar com as patas no soalho. Às nove cedi finalmente à sua persuasão, enfiei uma camisola de lã sobre a camisola do pijama, vesti umas calças, calcei as primeiras sapatilhas que apanhei - felizmente, faziam par -, peguei no gorro, no cachecol, no casacão, nos óculos de sol e no saquinho de apanhar cocó, pus-lhe a trela e descemos a correr. Chegada à rua, ficou sem vontades nem urgências. Após vinte minutos de passeio, lá soltou uma mijinha de estrumfe, mais por caridade do que por vontade séria, creio eu. Frustrado, eu, satisfeita, ela, voltámos para casa.

Dei-lhe de comer e, de seguida, o comprimido anti-stress. Desde que se auto-mutilou que anda em tratamento (entretanto já foi operada e está melhor, obrigado). Dar-lhe o comprimido implica enfiar-lhe uma minúscula cápsula dentro da garganta. Conseguiu cuspi-la duas vezes, não sei como, mesmo depois de eu me ter certificado de que a pequena pílula tinha sido enterrada já na fronteira do duodeno. À terceira lá deve ter engolido, pelo menos não encontrei nada no chão. Tudo isto antes das dez da manhã, com a Lady Verde a descansar traquilamente na cama. Se há coisas a que a Lady é imune é à cachorra - a partir do momento em que eu me levanto para tomar conta da ocorrência - e à ansiedade dos dias de Clássico. É uma pessoa feliz.

Aproveitei que já estava de pé e decidi dar início ao tradicional conjunto de coisas inúteis que faço de maneira a queimar tempo até à hora de jogo. Hoje comecei por consultar as listas de palpites que os meus amigos das Ligas de Palpites 1X2 fizeram para esta jornada. Fiquei muito surpreendido com a quantidade de gente a quem palpita que o Benfica não vem do Dragão com os 3 pontos. Senhores, tantas apostas em "1" ou em "X" - ou em "1/X", já que houve quem tentasse mascarar o pessimismo com um dupla enfezada. Eu apostei 2 de caras. Não sou capaz de ter como convicção que o Benfica não vai ganhar, seja que jogo for. E, mesmo que a tivesse, recusar-me-ia sempre a ganhar pontos, a acertar um palpite à custa da perda de pontos do Benfica. Deixei-lhes o recado "vocês deviam confiar mais no Jonas, rapazes". Deviam mesmo.

Feita a ronda deu-me a fome e a Lady Verde levantou-se da cama, muito mais bela do que já era, graças ao seu imenso e pacífico sono de beleza. Como não havia material suficiente para dignificar um pequeno-almoço de domingo, decidi descer ao Pingo Doce de Santa Apolónia e fazer umas compras. Aproveitei para comprar várias outras coisas para além do pão, da manteiga, das cápsulas de café e do queijo flamengo fatiado (também precisava de gel de banho, de guardanapos de papel e apetecia-me alfaces - não sei porquê, mas apetecia-me mesmo. Ainda não as comi, no entanto).

Frente à estação, o mundo enchia-se de Benfiquistas. Eu sei que às vezes sinto alguma repulsa pelos Benfiquistas em excesso, mas nestas ocasiões todos os Benfiquistas são honrosos e todos fazem falta. Multidão vermelha de sandes, minis e latas de cerveja na mão, gente espalhada pelo espaço, Benfiquistas sentados em bancos de espera, Benfiquistas deitados em degraus de espera, Benfiquistas tomando sol e Sagres em esplanadas de espera. Benfiquistas encostados a paredes, à espera. Estes Benfiquistas não apostaram nem um, nem xis, tenho a certeza. Estes são dos que apostam 2, de caras. Sempre.

Atravessava eu a multidão Encarnada pela segunda vez, já de regresso a casa, carregado de Renova, Mimosa e Vasenol, quando alguém me chamou. Um amigo, antigo colega de trabalho, homem do rock e da fotografia, grande Benfiquista, "vais lá acima?", "vou, claro, e tu?", "epá não posso..." Expliquei-lhe que ando concentrado no subsídio de desemprego. Quando digo concentrado, digo mesmo concentradinho, apertado, espremido, tão estreito, tão estreito que ir ao Dragão implicaria deixar contas por pagar. Ele está bem, "estou a trabalhar para o El País agora", disse-me, com felicidade. Fiquei contente, é bom ver amigos sorridentes, de bem com o mundo e a fazer o que gostam. Despedimo-nos com um abraço, "traz-me de lá esses três pontos", disse-lhe eu, e ele "não te preocupes". Virei as costas, enfiei a mão no bolso e pensei "eu não me preocupo. Eu confio no Jonas".

Vim para casa, a Lady Verde fez-me torradas, a cachorra entretanto está na varanda a apanhar o sol de Outono e eu estou a escrever este texto e a contar minutos.