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I miss the bloody 80’s. I bloody miss the fuckin’ 80’s.» Estou a ler, estou a chegar ao fim da leitura, do
Damned United, de David Peace. E é assim que ele escreve sobre as coisas, com aquela intensidade, com aquela verdade rigorosa, de dentro da cabeça das personagens. Ele está dentro da cabeça do Brian Clough, uma cabeça que, só por si, no mundo real, já era suficientemente arrojada, genial, intragável, trágica, cómica, hilariante, imbatível e frágil para dar uma grande biografia. Mas quando David Peace lhe mete os dedos nas entranhas, os olhos nas ideias e as palavras na boca e no pensamento, ficamos perante uma obra-prima da literatura moderna. O facto de ser uma história “no” futebol é um mero acidente: é a história de uma vida. É uma epopeia debaixo das bancadas, pelos corredores, ao virar da esquina, por trás das portas, regada com brandy e champagne, queimada com orgulho e dezenas de cigarros por dia.
Se o David Peace escrevesse uma grande obra literária sobre mim e se debruçasse sobre este preciso momento do meu namoro com o futebol, poderia perfeitamente escrever aquela frase lá de cima, com que o texto arranca.
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I miss the bloody 80’s. I bloody miss the fuckin’ 80’s.» Os anos 80 são o meu primeiro amor. Dizem que não há amor como o primeiro. É bem possível. A ingenuidade faz milagres. Eu entrei no Estádio da Luz pela primeira vez nos anos 80. Nos anos 80 o futebol era o contrário do que é hoje: era o dentro do campo e o fora do campo, os jogadores a chegarem em carros baratos e a almoçarem em tascos de terceira, o Chalana e a Anabela, o Shéu ainda era capitão, sucessor do Humberto Coelho e a gente parecia que conhecia todos, cada um deles, de jantares de família, eles eram quase nossos primos ou nossos vizinhos e não tinham agentes nem empresários e os negócios faziam-se com pinta, não era por DVD’s e anúncios nos jornais. Hoje é tudo muito internet, muito conferência de imprensa. É tudo pré-formatado, até as chuteiras vêm às fatias e depois monta-se, tipo Lego. E são amarelas e vermelhas e verdes e azuis. Dantes eram pretas e as riscas eram brancas e pronto. Nos anos 90 a Lotto fez as Donadoni e aquele símbolo verde fluorescente mudou as nossas vidas e o próprio futebol.
Nos anos 80, os ídolos do futebol eram muito mais humanos e, por isso, muito mais divinos. Sim, o Cristiano Ronaldo tem uma horta e o Coentrão vai-lhe lá roubar as couves. É um princípio, uma aproximação. Mas não é o que era. Nos anos 80, os jogadores eram frágeis e perdiam as casas e as mulheres a jogar ao poker, quando não era mesmo à lerpa, enquanto fumavam charutos e bebiam Jack Daniels. E isso era fixe. A dimensão decadente do futebolista de topo, o quanto maior a ascensão, maior a queda, eram tão mais apaixonantes que todo o juizinho do Messi, todo o cuidadinho com as unhas do C’stiano. Até a rebeldia do Ibrahimovic é coisa de menino se for comparada com o mau aspecto do Chalana que levou a direcção do Benfica a impor regras de apresentação no recinto do clube – regras que o Fernando não cumpriu, evidentemente.
No final dos anos 80, tinha o Benfica chegado à final da Taça dos Campeões, chegou ao Benfica Vítor Paneira. Eu a modos que me propus a escrever uma apologia de Vítor Paneira numa caixa de comentários de
um blogue praticamente primo mais velho deste. Porém, depois de todos os comentários que lá foram deixando, temo não ter muito mais a dizer sobre o elegante e brilhante 7, o mais genial ala direito que vi no Benfica. Paneira era de Famalicão e foi por lá que começou a dar nas vistas. Depois foi para o Vizela e o Benfica chegou a acordo para o arrancar de lá, meio a ferros. O Paneira não tinha empresários – nessa altura, para termos uma ideia, o Rui Barros ia para a Juventus e comprava Renaults 5s para os colegas que deixava no Porto. Não havia cá essas mariquices dos "empresários". Dois anos depois de ter chegado ao Benfica, Paneira foi preso. Foi condenado como “desertor”. Basicamente, fugiu à tropa para vir jogar para o Benfica. Se isto não é suficiente para ser o meu primeiro jogador preferido, não sei o que será. Acontece que não o foi (e eu no outro dia disse que foi, mas não foi, enganei-me, menti, omiti umas coisas, fiz confusão), mas já lá chegaremos.
Nos anos 80, quando os jogadores tinham Fords Cortina e Opéis Mantha – se fosses ponta-de-lança de renome, claro -, tive a minha primeira discussão futebolística. Foi com o meu pai. Eu e o meu pai sempre discutimos muito. Essa discussão foi por causa da final de Estugarda. O meu pai apostou dois almoços com amigos – mas apostou que o Benfica perdia. Aquilo ofendeu-me. Explicou-me ele que, assim, era como um prémio de consolação, “eu ganho um almoço para me confortar pela derrota; se tivéssemos ganhado, eu pagaria pela nossa vitória, entendes?”. Não. Ainda hoje não entendo como é que a comida poderia passar pelo meu esófago a saber a lágrimas e a raiva. Prefiro perder tudo – a puta da taça e os cabrões dos almoços. Mas nunca na vida hei-de comer nem beber às custas de uma derrota do Benfica! Não admito que me paguem para perder. E se o meu pai me estiver a ler, que fique bem claro: isto não é um negócio. Eu não troco uma coisa pela outra. Não quero meios termos. Não compro vitórias nem vendo derrotas. Foi o meu pai que me ensinou “entra sempre com tudo, senão magoas-te”. E é isso, um gajo entra com tudo.
Eu penso que o meu pai me fazia destas coisas para me testar. Eu quero acreditar que era só isso. Queria ver até onde é que eu ia. Eu, esse pequeno e ingénuo Benfiquista. Seria o meu sangue puro? E a minha crença? E a minha paixão? E os meus argumentos? Foi por isso, acho eu, que o meu pai sempre odiou os jogadores que eu adorei. Sempre fez questão que eu lhe explicasse e provasse e argumentasse até ao exaspero qualquer que fosse a afirmação e expressão de admiração fosse por quem fosse que vestisse aquela camisola. Um dos alvos preferidos do meu pai foi, claro, Vítor Paneira.
Eu quero acreditar que o meu pai sabia o que valia o Paneira e que quando dizia que “essa Amélia é um fiasco” o fazia só para me deixar naquele ponto de rebuçado que precedia a fúria que me ruborescia as faces quando ele acrescentava “qual Vítor Paneleira”… E eu, porque estava perante o meu pai, tinha de controlar a ira e transformar a raiva em enérgica e poderosa argumentação. Nunca desisti e bati-me sempre até ao fim. E esse poder vinha-me da genuína admiração por essa figura franzina, com jeito de anca e uma hesitação desconcertante nos pés, que eram metidos para dentro. Paneira foi a minha prova de maturidade futebolística, foi a figura que me fez observar e ser rigoroso, sem deixar pontas soltas, para me poder defender com factos, com provas e com argumentos, demonstrando, inequivocamente, que ele era o melhor ala direito da época. O melhor de Portugal. Um dos melhores da Europa. Ele, o Vítor Paneira que foi preso porque fugiu à tropa para jogar no Benfica. 75 dias.
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I miss the bloody 80’s. I bloody miss the fuckin’ 80’s.» Tenho saudades desse tempo de jogadores de carne e osso que eram divinos. Tenho saudades do Maradona. Tenho saudades de quando o Paneira me salvou a paixão e de então acreditar que a paixão podia ser salva sempre, acontecesse o que acontecesse. O Paneira salvou-me a paixão quando desertou da tropa para jogar no Benfica. Porque o meu primeiro amor não foi o Paneira. Foi o filho do Capitão. Esse que nos meteu - duas vezes de cabeça - na primeira final da Taça dos Campeões que eu vi de cachecol enrolado nas mãos - e que a seguir desertou do Benfica para jogar no Porto.