Em Dezembro de 1989 sofri como um verdadeiro pecador: uma aftose impiedosa deixou-me as paredes da boca, a língua, as gengivas e até os lábios em completa erupção. Foram quase dez dias de dores, ardores e fome, muita fome. Recordo-me que até respirar pela boca me causava sofrimento. Ao fim dos dez dias, e depois de uns três ou quatro em que já conseguia comer iogurtes e sopas trituradas - mas, ainda assim, frias -, a minha mãe tinha preparado um bacalhau com batatas e couves, cuidando que eu me encontrava ainda enfermo da ingestão e da mastigadura (como eu odiava bacalhau com batatas!) e, portanto, não comeria. Puro engano: àquele bacalhau, nem a pele lhe sobrou. Foi, de longe, o melhor bacalhau que comi na vida - e digo-o sendo hoje profundamente fã desse peixe que o português salga e seca.
Foram também dez dias de febres altas, alguns delírios e uma reclusão tortuosa, em que nem o meu irmão se podia aproximar em demasia, pois o contágio era, julgava-se, não só possível como provável. Sabendo-se da propensão que o meu irmão tem para o azar, para a poça distraída debaixo do sapato, para a pedra aleatória que lhe atinge a cabeça, foi uma decisão sensata.
Posso dizer que, com apenas dez anos, experimentei a loucura de uma solitária - tirando a parte da latrina e da falta de colchão. E de ter vista para a rua e de não sair de lá barbudo - levei 23 anos de liberdade a atingir este estado. Mas, de resto, fome e isolamento não me faltaram. Foi neste isolamento que tudo começou. Naquele tempo, não havia internet nem TV por cabo; havia dois canais e eu só apanhava um. O Lecas era o ponto alto do meu dia. Sozinho em casa, vi-me obrigado a improvisar com os recursos de que dispunha: playmobil e berlindes.
Tinha em abundância de ambos, berlindes e playmobil. Eram mais de duzentos berlindes, para cima de sessenta ou setenta bonecos. Tinha começado, nesse ano, a jogar nos infantis do Desportivo de Mafra. E, durante dez dias, via-me confinado a um quarto, sem poder aproximar-me de uma bola, de um campo - desde muito cedo fui sendo desviado de uma carreira gloriosa pelos relvados dessa Europa. A necessidade aguça o engenho, ou algo do género, e então decidi fazer o meu próprio futebol. Escolhi os bonecos com que mais simpatizava - o louro, com caneleiras, todo vermelho, chamava-se "Paulo" e era o meu alter-ego: n.º 10 à antiga (como em "Eusébio"), num 4-3-3 que tinha tanto de ingénuo quanto de eficiente: era sempre para esmagar. Os bonecos era eu que os mexia - a mão direita organizava o Benfica, a esquerda manipulava desastradamente o seu adversário. As balizas, num tempo em que as redes longas vieram substituir aquelas de pouca profundidade, eram formadas por cassetes áudio: duas, lado a lado, faziam o fundo da baliza; e duas, ao comprido, desde esse fundo até à face de cada um dos postes. BASF, Sony, Maxell, até velhas edições oficiais dos Ministars, dos tempos do meu ATL (uns dois anos antes), tudo serviu de malha lateral, de fundo longínquo, de rede em cujos buracos um dia Rashidi Yekini haveria de enfiar os braços num festejo imortal.
Eu gostava que as balizas fossem bonitas. Por isso, escolhia as cassetes com mais pinta para as construir. Havia uma cassete feia e sem capa que ficava sempre de fora. Não tinha letras nem símbolos nem era transparente, nem de iron: era opaca e não diza coisa alguma.
A solidão e o isolamento trouxeram-me certas experiências e hábitos. Descobri, por exemplo, o silêncio ou a habilidade para esperar, sem impaciência. E foi graças ao silêncio que descobri os Beatles: ao fim de três ou quatro dias de solidão e de conversas muito espaçadas à hora das refeições, senti que havia um vazio sonoro que podia ser preenchido. Peguei no gravador e leitor de cassetes que o meu pai comprara na Dona Nazaré, ali no lugar da Paz, ou que lhe saiu nuns furos, pouco tempo antes, já não me recordo da providência que me permitiu ter um pouco mais de companhia nesses dias tristes e chuvosos.
E foi entre quatro paredes, atormentado por aftas e febres, que introduzi no gravador e leitor de cassetes a cassete feia e sem letras, uma das que sobrava sempre ao improviso daquele estádio de maravilhas sobre uma alcatifa azul que fez tantas vezes de reconfortante relva verde. Lá dentro tinha os Beatles, numa colectânea que lhes atravessava a discografia - Penny Lane, Strawberry Fields Forever, Lucy in the Sky with Diamonds, todo um mundo se abria em meu redor ao mesmo tempo que o meu mundo se fechava cada vez mais sobre o futebol e a paixão pelo fenómeno florescia.
Nesse tempo as equipas inglesas não jogavam na Europa. Desde a tragédia do Heisel, ficaram todas de castigo durante cinco anos - e o Liverpool durante seis. O meu pai explicou-me que era dos hooligans. Percebi razoavelmente o que isso era. O meu pai também me explicou que o Porto só foi campeão europeu porque "não havia ingleses... assim, qualquer um é campeão". Depois, fomos nós a duas finais intercaladas, que não ganhámos. Mas o certo é que, desde que os ingleses voltaram, nós nunca mais disputámos uma final europeia. O meu pai alguma razão lá havia de ter. «Porque», dizia o meu pai, «o que é que são as competições europeias sem um Liverpool, sem um Leeds, sem um Derby County, sem um Tottenham, sem um Nottingham Forest?!». E aqueles nomes ficavam-me na cabeça. O meu pai nunca gostou dos Manchester United. O Arsenal não lhe dizia nada. Apreciava era o Liverpool, sobretudo. Chelsea, City, etc., isso nem existia. E eu jogava com os bonecos da playmobil e ouvia os Beatles e tentava imaginar como seria o Liverpool a jogar à bola, na Inglaterra. O meu pai dizia «aquilo lá é tudo diferente: conduzem pela esquerda e até os estádios são quadrados - parecem caixas de fósforos».
Uns tempos mais tarde, já eu era saudável o suficiente para poder voltar a detestar convictamente o bacalhau com batatas, um amigo meu comprou um Commodore Amiga 500, até hoje o melhor computador alguma vez inventado. E comprou um jogo: Football Manager. Nessa edição, ainda limitada, só se podia escolher clubes ingleses. Ele escolheu o Liverpool. Eu, desfilando os vários símbolos, fui reconhecendo vários nomes que o meu pai mencionava no seu saudosismo pelos ingleses na Europa. Porém, as cores e o símbolo do Arsenal atraíram-me. Perguntei ao Nuno, o dono do Amiga, «estes são bons?» e ele «são... não é o Liverpool, mas são porreiros». E eu escolhi-os.
E foi pouco tempo mais tarde que tive a honra de conhecer o Arsenal. Numa edição confusa da Taça dos Campeões que já era Liga dos Campeões - ou da Liga dos Campeões que ainda era Taça dos Campeões -, o Benfica foi ao velho Highbury, uma caixa de fósforos tal qual o meu pai descrevera, e começou a perder. Mas depois conseguiu empatar, num jogo de grandes nervos. Depois veio o prolongamento e o Isaías fez uma exibição soberba, ganhámos 3 a 1. No final, o público do Highbury levantou-se e aplaudiu de pé o meu Benfica. Ainda hoje me comovo quando penso nisso e lembro-me do que pensei nesse momento: «tão bom...».
Nesse dia, a minha paixão pelo futebol inglês, que já fora semeada ao som da Peny Lane, nasceu. E o meu respeito - porque não: amor adoptivo? - pelo Arsenal fundou-se em definitivo. Desde então, o meu sonho foi ir a Inglaterra ver a bola. Gozando dos benefícios do tempo livre, fui.
Primeiro, fui ver o Tottenham.
Depois fui ver o Liverpool a Upton Park.
Falhei o Arsenal. Mas metade do sonho foi realizado. E ainda ouvi os "hammers" a cantar o Bubbles. I'll be back.