Assisti ao jogo de sábado num restaurante ali perto do Campo das Cebolas. Ao jantar, éramos dois Benfiquistas, uma sportinguista, um belenense, um adepto do União de Coimbra - não sei como se designam os adeptos do União de Coimbra - e um número indefinido mas bastante generoso de adeptos portistas. Eram seis ou sete, talvez.
A constituição das equipas prenunciava um derby atípico: de um lado, havia mais portistas do que Benfiquistas e sportinguistas juntos; do outro, o Cortês era titular.
No final do jogo, antes de ir beber uma poncha, comentava com um dos portistas que aquilo que mais procuro enquanto apaixonado do futebol é, precisamente, a origem dessa paixão - ao mesmo tempo que o que mais me maravilha na minha paixão pelo futebol é exactamente a impossibilidade de a explicar e de lhe identificar a origem. O que me move é também o mistério disto de ser Benfiquista - essa maravilhosa conjugação genético-temporal que impediu que eu tivesse morrido antes de 1908.
Ontem passei o meu dia a colher a sementeira da noite anterior, tanto ao nível de paixão futebolística quanto das consequências dramáticas de uma poncha feita com sabedoria e sem delicadezas. Não sei se me doía mais a cabeça de pensar no jogo ou de ter bebido um terceiro copo.
Ainda ontem um amigo Benfiquista debatia comigo, via facebook, a tremenda pobreza deste derby. Contrapus que o jogo não fora mau e que o resultado me parecia justo, ao que ele respondeu sabiamente «o que mais me desilude num derby é que ele seja justo e como se espera». Hoje foi outro amigo que se insurgiu contra a falta de sal que este jogo, outrora maravilhoso, apresenta nos tempos recentes.
E a verdade é que a bonomia de que este derby - O Derby! - se revestiu vai contra a essência de alguns dos ingredientes que, seguramente, compõem o mistério por que me apaixonei nem sei bem quando, provavelmente ainda antes de ter nascido.
Dantes eu tinha nervos nas semanas que antecedem o jogo. Agora, sinto um leve aperto no estômago durante os primeiros minutos da partida, que é normalmente o período em que os jogadores adversários têm pernas. Mas depois passa-me. Pior ainda é chegar ao fim e ficar mais ou menos indiferente ao desfecho do jogo - «vá lá, o Markovic marcou, foi um grande golo e tal, empatámos, não é vergonha para ninguém» - e fico absolutamente desiludido comigo porque este sempre foi para mim O jogo dos jogos.
Não sei se o mal está em mim, mas sei que já não encontro mal neste jogo. O mal era um ingrediente vital, era a matéria pulsante que nos fazia vibrar. Eu não quero empatar um a um com o Sporting - se for para empatar, que seja dez a dez que é para eu ver esses gajos, pá, ir apanhar a bola dez vezes ao fundo da baliza. Andamos simpáticos, andamos meigos. Gosto muito de nos ver a todos civilizados e folgo em saber que os dois rivais conseguem ser rivais sem andar à porrada. Não é disso que estou a falar. Falo de uma atitude de cada adepto para consigo próprio. Talvez nos ande a faltar a chama que incendeia aqueles jogadores e os faça sentir que Aquele jogo não é um jogo qualquer.
Dou por mim a ter mais receio de ir à Madeira do que de ir a Alvalade, dou por mim a ver O derby entre portistas, dou por mim a não ter dores de barriga, dou por mim a ter mais incertezas quanto ao resultado que faremos em Coimbra do que ali e isto tudo amolece-me. Já não espero golear em Alvalade como não espero ser goleado. Já considero improvável que o Benfica perca. Mas, pior ainda, é constatar que os resultados destes derbys modernos se adequam, quase sempre ou pelo menos dentro de um limite razoável, ao futebol que foi praticado no campo. Isso pode ser justo mas eu aqui trocava a justiça por uma surpresa que me deixasse de rastos ou que me levasse às nuvens.
Se eu quiser ver justiça, vejo as séries da noite na SIC e na TVI. Se eu quisesse ver coisas adequadas, comprava um aquário e punha lá dentro dois peixes dourados. Eu quero ver é futebol por outra razão qualquer, que eu desconheço mas que me apaixona.