Um bocadinho mais crescido, ia jogar para o campo do Mafra. Na altura os portões não se fechavam, aquilo era pouco mais que um clube de aldeia - duas dezenas de adeptos, um barracão a fazer de bar onde se vendiam as bifanas, os amendoins e a coca-cola (mais tarde vim a saber que também vendiam cerveja), uns balneários quase decentes, cabines de suplentes muito dignas, em pedra, porém pequeninas, uns eucaliptos enormes por trás da baliza poente e era nessa baliza, eternamente à sombra, que eu marcava penaltys com uma bola do Benfica (às vezes ia sozinho). Depois joguei mesmo no Mafra, com equipamento e tudo. E botas de futebol que a minha mãe engraxava com brio e com esperança. Tínhamos sonhos.
Porque eu depois ia jogar no Benfica. O plano era muito simples. Consistia em ir jogando à bola até que chegasse o dia em que o Benfica se apercebia do meu talento e então o Benfica mandava uma equipa de pessoas que chegavam, mandavam parar tudo e diziam ao meu pai "senhor Urbano, vamos levar o seu filho. Precisamos muito dele. Obrigado por tudo". A minha mãe fazia-me um lanchinho à pressa e passava-me a mochila com uma ou duas mudas de roupa e o chefe da equipa de pessoas dizia "não se preocupe com equipamento que temos lá tudo". E lá ia eu. A minha missão era livrar o mundo do poderoso Milão repondo a ordem natural das coisas com o Benfica no topo, acima de todos.
E eu fui tentando cumprir o plano, cada vez com mais esforço mas sempre carregadinho de esperança, uma esperança inabalável, como se tudo no universo, no tempo e na minha existência tivesse um destino óbvio: vestir aquela camisola 7, fazer a ala toda, encher o campo com cruzamentos milimétricos, passes de morte rasteirinhos e diagonais diabólicas.
A dada altura, apercebendo-me de que o Benfica demorava a aperceber-se de mim, tendo eu contas para pagar e um futuro urgente por resolver, decidi fazer uma pausa. Não era abandonar o futebol. Era apenas descansar. Apanhar ar, refrescar, ganhar balanço para um dia mais tarde reiniciar tudo, reentrar em campo - sempre com o pé direito (nunca me benzi, sempre achei ofensivo andar a chamar deus para um assunto de homens; nunca quis intromissões nem batotas, sempre fiz jogo limpo; nunca levei um amarelo na vida) -, levantar finalmente o Estádio com um golo de bandeira, um pontapé de fora da área capaz de fazer o Rui Costa comover-se. Eventualmente, ser campeão europeu como José Águas. A toda a hora ser digno de tudo o que se herda quando se enverga a mais bela das camisolas.
Mas hoje acordei e o Benfica ainda não tinha mandado uma equipa de especialistas em grandes jogadores do futuro e nos jornais ainda não tinha vindo escrito sobre mim que era "o prodígio escondido" ou "o génio esquecido" ou "um talento por revelar", pelo que perdi definitivamente a esperança. E eu estou velho. Hoje acordei e estava mais velho que Pablo Aimar. Nunca vou jogar no Benfica.