-Querido Master, permites que te dirija a palavra?
-Nunca estiveste impedido de o fazer, poeira insignificante de Benfiquismo…
-Bem sei, mas fui veementemente desaconselhado pela tua nobre pessoa de me dirigir a ti no decorrer de um determinado período. Humildemente, deixei-me guiar pelas tuas palavras.
-Fosse o teu respeito proporcional à tua obediência e viveríamos em pacífica harmonia. Isso que trazes na mão, o que é?
-É… bom, é o número mais recente do
Ontem Vi-te no Estádio da Luz…
-Ah! Vejo que te educas bebendo de várias fontes…
-Querido Master, sabes que só os teus ensinamentos me constroem.
-Se assim é, porque lês a doutrina de Ricardo?
-Porque “o homem deve conhecer os vários lados…
- … de uma mesma questão”.
-Ele fala sobre Vieira.
-Bem sei. No estrito cumprimento dos meus próprios ensinamentos, também eu leio o que diz.
-E discordas do que diz?
-Fundamentalmente, discordo do modo como o diz.
-Porquê?
-Porque ataca como um ressentido. E “um ressentido perde…
- … clarividência; sem clarividência, perde-se pertinência”.
-Muito bem.
-E o que pensas sobre a sua argumentação?
-Julgo que sustenta o que afirma. Mas fá-lo com esforço e sem paz. As suas palavras nascem de um confronto objectivo entre a sua própria expectativa e uma interpretação parcial do que resulta de Vieira. Isto, causa desequilíbrio.
-É mau?
-Pode ser frágil. Tem, porém, uma virtude: assume inequivocamente a sua posição. É louvável e honrado. Mas a construção de um bem maior carece de mais do que honra, firmeza e decisão. Precisamos de equilíbrio e de serenidade antes de assumirmos o nosso lugar, antes de firmarmos os nossos pés como raízes.
-E encontras-lhe fragilidades?
-Encontro e dói-me dizê-lo. Ricardo é um bom pensador e um bom homem. Mas o ressentimento toldou-o, impedindo-o de ser justo como uma balança de merceeiro. Por exemplo, Ricardo fala da relação entre Rui Costa e Vieira. E fá-lo depreciativamente, apontando Rui Costa como “uma boa desculpa” e um “elo descartável, se necessário” no esquema vieirista.
-E está errado?
-É possível que esteja. E essa possibilidade deveria levá-lo a pensar, a questionar. Imaginemos: e se, ao invés de boa desculpa e elo descartável, Rui Costa for afinal o mestrando do presidente, o seu protegido? Vieira pode perfeitamente ter decidido resguardar Rui Costa, cuja imagem sofreu desgaste após a trágica época que passou. Este resguardo foi, aliás, extensível ao próprio presidente. Não digo que seja precisamente isto ou absolutamente aquilo. Do mesmo modo que não creio que Ricardo o possa fazer. Mas inclino-me mais para a visão de Rui Costa o protegido do que de Rui Costa o descartável.
-E sobre Enzo Pérez?
-Partilho da estupefacção de Ricardo, reajo com a mesma estranheza e, confesso, cheguei a indignar-me com o assunto. Ainda assim, agora que recuperei a calma…
-A calma é a tua identidade, querido Master…
-… agora que recuperei a calma, sou capaz de ver mais do que um lado desta mesma questão. Imagina que se investiu mais de cinco barris de dinheiros neste jogador que não sabemos quem é. Imagina que ele está cá contrariado. Todos os elementos que temos apontam para um erro cometido na hora de o contratarmos. Parece frágil de espírito, mimado, fraco profissional. Contrariado e sem qualquer possibilidade de chegar à titularidade, estamos perante uma tragédia: cinco barris de dinheiros deitados ao fundo do mar. Acompanhas o meu raciocínio, Pequeno Vermelho?
-Sim, Master, todo eu sou atenção e raciocínio. Cinco barris de dinheiros no fundo do mar, sim.
-É só uma metáfora… agora imagina, tu não queres os teus dinheiros a dar de comer aos peixinhos, pois não?
-Pois não.
-É aí que o empréstimo do Enzo aos indígenas surge como tentativa desesperada de salvar nem que seja um ou dois barris, deixando-o jogar e fazendo muitas figas para que alguém o veja e o compre. Isto dos investimentos é uma ciência de muita superstição… Parece-te plausível?
-Plausibilíssimo, querido Master. E em relação ao “mandato desportivo”? Não consideras um fracasso?
-Considero a época passada um fracasso pela míngua de títulos, sobretudo porque nem correspondeu à qualidade que demonstrámos ao longo de grande parte da época. Não considero um fracasso todo o mandato. Conquistámos categoricamente um campeonato e duas Taças da Liga, atingimos uma meia-final de uma competição europeia.
-E achas bastante?
-Não, claro que não. Nós somos o Benfica, Pequeno Vermelho! Quando o último adversário for derrubado, inventaremos um novo troféu para que possamos conquistar mais um título! Todos são poucos.
-Então… como não consideras um fracasso?
-A verdade, Pequeno Vermelho, considerando que existe apenas uma, é que a nossa grandeza existencial e espiritual não tem correspondência terrena: a hegemonia vigente está nas mãos dos demoníacos.
-Ooohhh… todo eu sou espanto.
-É. Custa a crer, bem sei. Há trinta anos que o império do mal vai urdindo uma teia firme e complexa que nos enreda e limita. Se achas que minto, posso assegurar-te que já fomos comidos muitas vezes.
-A vergonha… a vergonha…
-Sim. Mas não quero ir por aí. Foquemo-nos no desporto, no Belo Desporto. Perante uma potência hegemónica vigorosa e recuperando nós de uma prolongada situação comatosa, o mais Nobre Organismo do futebol mundial considerou-se capaz de fazer frente à realidade logo ao primeiro sinal de potência. Porém, na hora certa, as pernas tremeram-lhe e foi o que se viu. Considero que é triste, mas não um fracasso. Foi uma primeira tentativa de assalto ao poder. Falhou. Este ano tentamos de novo, com uma maturidade nova e uma vontade renovada.
- “Um colosso não se derruba de um só golpe”.
-Falaste com a precisão de um falcão peregrino.
-Querido Master, e não consideras que Vieira tem culpas no falhanço desse assalto?
-Com certeza que as há-de ter. Tal como eu as tenho, pois também eu acreditei no que ele disse antes mesmo de ele o ter proferido! A ilusão deturpa-nos os sentidos, pois a realidade divergia das nossas crenças: a conquista de um campeonato não nos devolve a hegemonia.
-E o que tens a dizer, iluminado ser, acerca das negociações dos direitos de transmissão televisiva?
-Tenho a dizer que devemos ser firmes.
-Com a Olivedesportos?
-Preferia que não negociássemos com a Olivedesportos, mais que não seja, por uma questão de princípio – da mesma forma que espero que nunca sejamos patrocinados pela Super Bock. Há coisas que não casam bem com a nossa identidade. Porém, nestas matérias também não estamos sós e existe alguma dependência de um sistema mais complexo do que apenas a nossa vontade. O ideal seria termos a nobreza de, durante um ano, sermos independentes, com todas as transmissões em exclusivo na BenficaTV. No final do ano, far-se-ia um balanço e, com esse balanço, teríamos mais crédito e trunfos para negociar. Penso que Vieira terá de pôr de parte a sua medonha amizade com Joaquim Oliveira e fazer-se firme e forte, subvertendo a lógica do sistema: ele precisa mais do Benfica do que o Benfica precisa dele.
-Hum… olha e fala-se ainda da venda de jogadores. Que tens a dizer sobre o assunto?
-Desagrada-me que a verdade de ontem seja hoje mentira. Mas a verdade de hoje parece-me verdadeira, lógica e sensata: provavelmente, teremos de vender um ou mais jogadores. Não me choca e não me parece dramático. Compreendo o incómodo de Ricardo: há um desdizer do que foi dito e essa palavra dada que volta atrás é sintoma de falta de nobreza.
-Hum… Master querido, gosta de Luís Filipe Vieira?
-Respeito Luís Filipe Vieira, aprecio parte do seu trabalho e aponto-lhe os erros que julgo ter. Mas, respondendo à tua verdadeira questão, quando me fiz sócio a minha intenção era bem clara: ficar-lhe, um dia, com a cadeira!