quinta-feira, 23 de agosto de 2012

Fantasia de futebol

Sejamos organizados, metódicos: da esquerda para a direita, sobre a mesa de apoio, uma pequena taça com castanhas de caju, outra com amendoins salgados e uma última com pistáchios com casca. Em frente desta, um pires. Para as cascas. Os chinelos do Benfica nos pés, a base para o copo, o próprio copo; da lata, outrora de Amstel e hoje de Heineken, escorrem minúsculas gotas. Esta lata tem de ser aberta, caramba! Não, primeiro ligo a televisão. Diz assim o senhor sobre o genérico de um programa que, aparentemente, dava dinheiro a velhinhos e no qual as pessoas se riam muito, «não perca já de seguida o Celtic – Benfica, jogo da Liga dos Campeões, em directo e em exclusivo na sua TVI». Entram os chamados compromissos publicitários, faltam mais de dez minutos para o início do match e eu penso “o senhor que falou durante o genérico não usou a popular expressão «dentro de instantes» - «já de seguida» pode demorar um bocado”. E demora, como previsto, demora. Vivo esta espera com um agradável sentimento de masculinidade: enquanto bebo a minha cerveja e espero pelo futebol, deslumbram-me com anúncios a automóveis cheios de estilo e eu fumo um cigarro, como cajus, amendoins e pistáchios, sempre por ordem, um golinho na Heineken, mais automóveis, gosto mesmo disto, e a seguir anúncios a cervejas, quase não pode melhorar, anúncios a pneus, a reparadores de vidros que reparam muito rapidissimamente os seus vidros, num instantinho, mais um gole na Heineken, caju, amendoim, pistáchio, por esta ordem, é Fords Focus pelo mundo inteiro e cervejas de várias marcas para fazer amigos e matar sedes e conseguir miúdas giras, tudo enquanto eu espero muito descontraída e masculinamente pela bola e bebo, com a suavidade de um homem que está bem na vida, a minha Heineken.

Meto-me a pensar nas coisas. Como seria há 150 anos atrás? Momentos antes do match de um jogo ainda sem nome definido – e em que as balizas não tinham tecto, sequer – se iniciar, os cavalheiros, rivais, juntavam-se a um balcão improvisado cofiando barbas e afiando bigodes. Os vendedores de carroças e cavalos aproveitariam para publicitar os seus artigos, emoldurando-os com finíssimas damas de chapéus muito elegantes. E os cavalheiros rivais conversavam sobre bens ancestrais, tradições que ao tempo não tinham sequer bolhinhas «tem de provar esta cerveja, meu caro, é a receita do Convento de Vialonga, uma maravilha» e o outro, retorquindo «não vai mal, não vai mal… mas prefiro a do Mosteiro de Leça», «do Balio ou da Palmeira?», «de cevada, ora essa…» e fumavam cigarros e apreciavam charrétes coupé à espera de um jogo que ainda se jogava a meias entre os pés e as mãos. Muito evoluiu o homem!

Vai começar. Entra o hino – mas, alto!, este hino vem retocado. Não entendo o que se passa. Parece-me a voz do Paulo Gonzo. É mesmo a voz do Paulo Gonzo. E a letra também foi mexida. Agora canta o José Cid. Aparentemente, a letra enaltece a glória, sim senhor, pois claro. É a história de um pequeno herói, o trilho percorrido por um menino que nasceu aleijadinho filho de uma mãe que era ceguinha e prostituta e que pesava muito, mas que lutou pelo seu filho e o pôs a jogar nas escolinhas de um clube imaginário, em Alcochete. A criança entretanto cresce e ultrapassa uma crise de adolescência em que se mete nas drogas, derivado das más companhias e da influência de uma namorada muito malvada – tudo isto após a morte da mãe, vítima de doença prolongada –, e regressa aos relvados decidido a honrar a memória de sua mãe. Esta letra é muito bonita e o dueto Gonzo – Cid só a eleva ainda mais. Mas o melhor estava guardado para o fim, quando, com aparato épico equivalente àquela parte «da chaaaaaaampiooooooooons», entra o Toy a cantar o momento em que o menino, agora jovem adulto, é campeão europeu ao serviço de um clube qualquer colossal, cujo nome não é mencionado, em pleno Estádio de Wembley e se esvai em lágrimas apontando para o céu e dizendo «mãezinha, mãezinha», enquanto beija a taça. E eu arrepio-me todo a ouvir isto.

As equipas estão a subir ao relvado, o comentador da TVI mal consegue falar, notoriamente emocionado pela versão do hino que a estação preparou para as emissões da Champions League. Nem o onze inicial do Benfica o homem consegue ler. Caju, amendoim, pistáchio e, zás, um golinho de Heineken. Pode começar.

Sem comentários: