domingo, 14 de dezembro de 2014

Relato de uma manhã de Outono

O plano "vou aproveitar para dormir até tarde" foi prematuramente abortado quando a cachorra decidiu acordar e acordar-me às oito da manhã. Aparentemente, estava aflita: não parava de saltar, de ganir, de raspar com as patas no soalho. Às nove cedi finalmente à sua persuasão, enfiei uma camisola de lã sobre a camisola do pijama, vesti umas calças, calcei as primeiras sapatilhas que apanhei - felizmente, faziam par -, peguei no gorro, no cachecol, no casacão, nos óculos de sol e no saquinho de apanhar cocó, pus-lhe a trela e descemos a correr. Chegada à rua, ficou sem vontades nem urgências. Após vinte minutos de passeio, lá soltou uma mijinha de estrumfe, mais por caridade do que por vontade séria, creio eu. Frustrado, eu, satisfeita, ela, voltámos para casa.

Dei-lhe de comer e, de seguida, o comprimido anti-stress. Desde que se auto-mutilou que anda em tratamento (entretanto já foi operada e está melhor, obrigado). Dar-lhe o comprimido implica enfiar-lhe uma minúscula cápsula dentro da garganta. Conseguiu cuspi-la duas vezes, não sei como, mesmo depois de eu me ter certificado de que a pequena pílula tinha sido enterrada já na fronteira do duodeno. À terceira lá deve ter engolido, pelo menos não encontrei nada no chão. Tudo isto antes das dez da manhã, com a Lady Verde a descansar traquilamente na cama. Se há coisas a que a Lady é imune é à cachorra - a partir do momento em que eu me levanto para tomar conta da ocorrência - e à ansiedade dos dias de Clássico. É uma pessoa feliz.

Aproveitei que já estava de pé e decidi dar início ao tradicional conjunto de coisas inúteis que faço de maneira a queimar tempo até à hora de jogo. Hoje comecei por consultar as listas de palpites que os meus amigos das Ligas de Palpites 1X2 fizeram para esta jornada. Fiquei muito surpreendido com a quantidade de gente a quem palpita que o Benfica não vem do Dragão com os 3 pontos. Senhores, tantas apostas em "1" ou em "X" - ou em "1/X", já que houve quem tentasse mascarar o pessimismo com um dupla enfezada. Eu apostei 2 de caras. Não sou capaz de ter como convicção que o Benfica não vai ganhar, seja que jogo for. E, mesmo que a tivesse, recusar-me-ia sempre a ganhar pontos, a acertar um palpite à custa da perda de pontos do Benfica. Deixei-lhes o recado "vocês deviam confiar mais no Jonas, rapazes". Deviam mesmo.

Feita a ronda deu-me a fome e a Lady Verde levantou-se da cama, muito mais bela do que já era, graças ao seu imenso e pacífico sono de beleza. Como não havia material suficiente para dignificar um pequeno-almoço de domingo, decidi descer ao Pingo Doce de Santa Apolónia e fazer umas compras. Aproveitei para comprar várias outras coisas para além do pão, da manteiga, das cápsulas de café e do queijo flamengo fatiado (também precisava de gel de banho, de guardanapos de papel e apetecia-me alfaces - não sei porquê, mas apetecia-me mesmo. Ainda não as comi, no entanto).

Frente à estação, o mundo enchia-se de Benfiquistas. Eu sei que às vezes sinto alguma repulsa pelos Benfiquistas em excesso, mas nestas ocasiões todos os Benfiquistas são honrosos e todos fazem falta. Multidão vermelha de sandes, minis e latas de cerveja na mão, gente espalhada pelo espaço, Benfiquistas sentados em bancos de espera, Benfiquistas deitados em degraus de espera, Benfiquistas tomando sol e Sagres em esplanadas de espera. Benfiquistas encostados a paredes, à espera. Estes Benfiquistas não apostaram nem um, nem xis, tenho a certeza. Estes são dos que apostam 2, de caras. Sempre.

Atravessava eu a multidão Encarnada pela segunda vez, já de regresso a casa, carregado de Renova, Mimosa e Vasenol, quando alguém me chamou. Um amigo, antigo colega de trabalho, homem do rock e da fotografia, grande Benfiquista, "vais lá acima?", "vou, claro, e tu?", "epá não posso..." Expliquei-lhe que ando concentrado no subsídio de desemprego. Quando digo concentrado, digo mesmo concentradinho, apertado, espremido, tão estreito, tão estreito que ir ao Dragão implicaria deixar contas por pagar. Ele está bem, "estou a trabalhar para o El País agora", disse-me, com felicidade. Fiquei contente, é bom ver amigos sorridentes, de bem com o mundo e a fazer o que gostam. Despedimo-nos com um abraço, "traz-me de lá esses três pontos", disse-lhe eu, e ele "não te preocupes". Virei as costas, enfiei a mão no bolso e pensei "eu não me preocupo. Eu confio no Jonas".

Vim para casa, a Lady Verde fez-me torradas, a cachorra entretanto está na varanda a apanhar o sol de Outono e eu estou a escrever este texto e a contar minutos.

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