Eu era medíocre, sempre fui e nem o meu complexo de messias impediu que, nas horas lúcidas, eu soubesse que não dava mais do que aquilo. Disfarçava esse estado com arrancadas diabólicas, picos de velocidade admiráveis e um ou outro golo apontados, na maioria das vezes, em estados que hoje me parecem uma espécie de transe - não guardo nenhuma memória clara de um golo que tenha marcado em jogos a sério; tudo o que me ficou são reconstituições coladas com o cuspe dos comentários alheios - do meu pai, do meu avô, do treinador, dos companheiros de equipa - e um ou outro flash muito tremido e desfocado do momento em que inusitadamente fiz com que a bola entrasse na baliza adversária. Os golos que marquei - felizmente não foram muitos - são o mais próximo que experimentei da levitação extracorporal: são fragmentos de um limbo entre o real e a fantasia que aconteceram, sem qualquer explicação, mais ou menos comigo ou com uma entidade fantástica da qual eu, naquele momento, participava.
Porém, a mediocridade, quando bem disfarçada, pode levar longe uma pessoa determinada e perseverante. Eu era convicto e cheio de sonhos. E acreditava profundamente que esses sonhos haveriam de realizar-se embora não encontrasse uma explicação lógica e razoável para conseguir demonstrar a mim próprio que sim, que era possível e que havia de acontecer num momento específico devido a qualquer coisa. Agora que reflicto sem pressas, penso que essa qualquer coisa talvez fosse um fenómeno aparentado a milagre que me permitisse, de um dia para o outro, passar a ser talentoso num campo de futebol. Esse fenómeno nunca aconteceu ou, então, esse dia ainda está para vir. Em todo o caso, temo que já seja demasiado tarde para eu ser abençoado com genialidade - e prefiro mesmo continuar tosco até ao fim dos dias, recuso peremptoriamente a possibilidade de um dia ser o Maradona da ala geriátrica.
Acho que o que me falhou foi a inadequação das expectativas. O pragmatismo que me falta em praticamente tudo na vida sobrava-me na maneira como encarava a minha futura carreira de futebolista: ia jogar no Torreense, para começar, e a seguir ia ser o número 7 do Benfica. O plano era bastante simples. Aliás, tão simples que nem sei como é possível ter falhado.
Dava comigo a imaginar o Estádio da Luz cheio - às vezes era domingo à tarde e jogávamos com o Espinho ou com o Chaves, outras vezes era quarta-feira à noite e recebíamos equipas como o Steaua de Bucareste ou o Malines -, a relva cortada curta e aparada em desenhos vistosos para quem estivesse a ver do Terceiro Anel, as redes penduradas, não muito esticadas, à espera daquele barulhinho fofo e demorado de quando a bola desliza a roçar-se nelas, o som macio dos chutos dados por adidas world cup em bolas da select. Mas a relva, a relva curta e bem tratada era o elemento fundamental. A relva muda tudo. Num pelado, o melhor que uma pessoa conseguia era dar pontapés à bola. Na relva era diferente. A bola tornava-se dócil e muito mais arredondada. Os meus pés, definitivamente ergonómicos, perfeitamente adequados à curva infinita daquele objecto fundamental, lidavam com o assunto como se eu calçasse pantufas. A relva suaviza o som de todas as coisas - a correria, as passadas fortes, os saltos, as quedas, os passes, as recepções. O jogo passa a ser sereno. Na relva não há lugar para coisas como o desespero porque desesperar num relvado seria uma enormíssima falta de respeito pelo chão que se pisa.
Joguei na relva do Campo Manuel Marques - o melhor relvado que alguma vez tive a sorte de pisar - numa única ocasião. Entrei na segunda parte e marquei um golo de pé esquerdo num pontapé de moinho à entrada da área. Foi este jogador - um prodígio de talento, um caprichoso esteta - que o futebol perdeu quando decidiu insistir que eu andasse por aí, de pelado em pelado, a tentar perceber os ressaltos de bolas mikasa em São João da Talha, na Póvoa de Santa Iria, em Alhandra, na Lourinhã, nos Olivais Sul ou em Alcabideche. Eu só precisava de mais relva e de outro glamour. Levantar-me cedo aos domingos para me ir equipar em cabines que eram pouco mais que barracas em terras mal semeadas entre os subúrbios de Lisboa e a província da Estremadura não era o meu sonho. O meu sonho nunca foi simplesmente jogar futebol; o que eu queria era jogar futebol em relvados bonitos. E foi isso que falhou.
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