sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

Tudo danças da chuva...

Corrijam-me se estiver enganado: Pablo Aimar não se benze quando pisa a relva – entra no campo para jogar à bola, sai do campo para agradecer os aplausos. Li, algures, que nem sequer dá atenção ao pé com que entra no rectângulo, que isso lhe é absolutamente indiferente.

Lembrei-me disto enquanto tratava dos meus cultivos, há bocado, antes de sair de casa para vir trabalhar. Talvez não conheçam esta minha faceta, mas, além de Benfiquista, sou também um orgulhoso microfundiário. Sou proprietário de nada menos que sete vasos de plantas que tenho na varanda, voltados para o sol e para o Tejo. Abri actividade quando me cansei de comprar pacotinhos de coentros no Pingo Doce por 89 cêntimos. 89 cêntimos por um saquinho de coentros de 100 ou 200 gramas?! Nem pensar! Nestas coisas sou um homem de acções e de trabalho: ao invés de protestar, peguei em mim e disse “olhe muito obrigado, mas deixe estar que eu semeio os meus próprios coentros”. E foi assim que me lancei na agricultura. E também tenho piri-piris. Comprei uma embalagem deles verdes, também no Pingo Doce. Pu-los ao sol durante três semanas. Depois, uma parte aproveitei para ir usando na culinária e os restantes abri e retirei-lhes as sementes, que agora devem estar a germinar nas profundezas dos meus terrenos. Um deles já despontou, mas ainda é muito pequenino.

Cuidar de toda esta vegetação exige atenção e muita disciplina. A falta de rigor deste Inverno poderia perfeitamente dar-me cabo das colheitas, não fosse eu um agricultor zeloso. Isto, tirando o cacto. Também tenho um cacto. Nunca percebo se está vivo. Mas tendo a supor que morto não está. Pelo menos, não apodrece. O restante, as verduras, digamos assim, exige cuidados especiais, derivados da falta de chuva. Esta obriga-me a proceder à rega diária das plantações. A minha mãe diz que se deve regar «quando o sol se começa a pôr». Mas eu, como a essa hora estou a trabalhar, faço o melhor que posso: rego às duas e dezanove, que é um minuto imediatamente antes de sair de casa para ir para o emprego, o que representa, na prática, o mais próximo que consigo estar, em simultâneo, das sementeiras e do pôr-do-sol.

Hoje, às duas e dezanove da tarde, dou comigo a regar e a pensar «tu regas sempre com a mão direita, Diego». E é verdade: nestes assuntos da agricultura, sou muito Assunção Cristas, e então rego com a direita porque tenho fé que, assim, os coentros crescerão mais viçosos e em maior número. Já para não falar nos piripiris. E depois pensei «pareces os jogadores de futebol» e é mesmo. Também eles são muito como a senhora ministra na hora de entrarem em campo.

Foi então que me lembrei de Aimar, que entra em campo como quem entra em casa, sem superstições nem mezinhas ou recurso a outra bênção que não aquela que lhe semeou magia nos pés. E é curioso ver que, num fenómeno que tem tanto de religioso e de superstição, um dos seus mais dignos e brilhantes praticantes parece comportar-se como um ateu. Mas não comporta. Na verdade, a sua atitude é a de um ungido – também não imagino Jesus, o Cristo, a fazer ele próprio o sinal da cruz. Está certo, são fervores diferentes. Mas a paixão e a cientificidade dos gestos é equivalente em ambos os contextos.

Eu, que nisto das superstições sou extremamente metódico, vejo em Aimar – enquanto ajeito o cachecol porque “assim” é que vai dar golo – o descanso para a minha fé. Porque ele confia, ele acredita. Confia nos seus companheiros e no seu treinador, acredita na estratégia e no seu talento. Não se dirige às divindades porque tem fé na essência humana do próprio jogo e essa fé basta-lhe.

9 comentários:

Here Comes The Rain disse...

As tuas dissertações são sempre muito boas. Muito bom.

POC disse...

Bom, pode ser aproveitado para os textos do Enorme Pablo.

Batalheiro disse...

"Foi então que me lembrei de Aimar, que entra em campo como quem entra em casa"

Invejo esta prosa...

lawrence disse...

O atleta que depende do pé com que entra em campo, as vezes que se benze, pa ta ti, pa tá tá... não tem confiança nas suas qualidades e deixa essa responsabilidade para o esotérico!
Na mesma linha com que me deparo no trabalho com o inevitável "inxálá" (se Deus quizer) quando preciso de qualquer coisa que involva prazos.

Ricardo disse...

Como alguém escreveu noutro espaço: "E é isto. Tu tens o espírito. És grande."

Discordo, no entanto, ali do Lawrence. Nem todos são Aimar, isso penso que é consensual. Mas não diria tão ferozmente que um jogador que entra pelos caminhos sinuosos do esóterico não tem confiança nas suas qualidades. É uma questão de fé e de obsessões. E ainda bem que elas existem. Nem que seja para podermos ter material de escrita - só Luisão dá para dois tratados sobre a crença e suas idiossincrasias.

Man, tira esta merda das letras. Um gajo fica um minuto a tentar perceber o que está ali escrito. É demasiado irritante.

Batalheiro disse...

Sim, e as letras dificultam comentários de quem tem perfil no wordpress.

Mas devo confessar que algumas combinações sugerem nomes para personagens, por exemplo "Firojec Selyin"

Faz lembrar os anos 90, "Benfica interessado em Firojec Selyin jogador três vezes internacional pelos sub-23 da Albânia"

Hugo disse...

Excelente!A tua capacidade e prosa é fantástica. Obrigado.

Já que falas, a minha mulher pensou como tu e, volta e meia, também tenho que regar a salsa e os coentros que estão na varanda...

Dado tratar-se de um espaço exíguo, normalmente rego as plantas com a mão direita por me dar mais jeito. Mas, volta e meia, em tom de heresia, lá pratico o acto com a esquerda...

No entanto, pelas minhas poucas virtudes na arte da rega, confesso que irei começar a regar as plantinhas apenas e só com a mão direita, não vá o diabo tecê-las...

Já Aimar não precisa de pedir auxílio ou protecção, tendo em conta que ele próprio é um Deus...da bola!

Quem trata a chincha daquela forma, é quem pode tratar os Deuses por tu e tem o privilégio de entrar no panteão no Olimpo...

Saudações Benfiquistas...

lawrence disse...

Ricardo:
Discordar do que eu escrevi, seu #%=*"+&!!!

pitons na boca disse...

Quando entrava em campo eu tinha os meus tiques, nem era tanto por superstição, era mais para ter uma imagem de marca para o pessoal da bancada identificar comigo (como a malta que decora todos os aspectos das vedetas da bola). Assim a malta já sabia e comentava: "lá vai aquele parvalhão outra vez, a entrar com o pés esquerdo à frente, a arrancar um raminho de relva sintética com a mão direita e a atirar para trás das costas por cima do ombro esquerdo - PÁRA DE FAZER ISSO, ESTÚPIDO. ESTRAGAS O CAMPO!"... e era assim, a malta sabia que era eu. Ou pelo menos eu queria acreditar que sabiam...

Rituais desses em casa ainda não tenho, que mudei-me há pouco tempo, e cultivo de verduras não é a minha praia.

Palavras de verificação: Gyasele Ostrandi, essa conhecidíssima estrela do imaginário porno da Moldávia.