Acordei rouco, quase sem voz, e com uma dor de garganta preocupante. Ontem fui jogar à bola, estava de chuva, suponho que estes sejam os danos colaterais. Lamento o facto de ter um concerto logo à noite e preocupa-me a possibilidade de não conseguir chegar ao fim de um alinhamento de dez músicas que defenderei absolutamente sozinho, com uma guitarra no colo e uma voz muito débil, numa recriação metafórica, alegórica, enfim artística, da figura que o Matic faz no meio-campo do Benfica. Mas ganhámos 4 a 2 ao pessoal da Linha, portanto, valeu a pena.
A vida não me tem corrido bem e talvez essa seja a origem da minha desinspiração crescente. De cada vez que penso em vir aqui e escrever um texto, abre-se um abismo entre mim e a criatividade, ergue-se uma barreira de pedra mental entre a minha ideia e a ponta mais distante dos meus dedos. Ontem, ainda durante o jogo, tentei cruzar uma bola, de pé direito, num lance em que seguia embalado, perpendicular à linha de fundo, com esta cada vez mais próxima. O gesto de rotação que me permitiu cruzar a bola provocou-me uma lesão, cujos danos ainda estão por avaliar, na face posterior da coxa esquerda. A semana passada, num lance semelhante, não consegui travar, tal o embalo, e, sem pitons, numa relva sintética bastante molhada, acabei espalmado contra o gradeamento do campo, com prejuízo grave para o meu braço esquerdo, cujas marcas ainda hoje ostenta: está negro, a passar de verde para amarelo. Não sei o que explodiu lá dentro, mas ficou feio.
Depois de quase ter perdido a vida contras as redes do campo, ontem decidi que era melhor jogar de chuteiras. Recuperei as minhas Nike Tiempo, umas vintage com 17 anos dos tempos em que eu ainda representava o grande Dépór. Estão como novas. Sempre odiei a Nike e não consigo, a esta distância, compreender os bizarros motivos que me terão levado a comprar aquele horror de botas. Uma bota de futebol, se não é Adidas, tem de ser Puma. Tenho alguma consideração por uma única excepção: a Lotto, marca que calçou com a maior elegância grandes talentos do futebol italiano dos anos 90. E a mim, que tive umas Roberto Donadoni, lindíssimas e que, não sendo italiano, também não era talentoso. O que faltava em génio, sobrava-me em coerência.
A minha mãe engraxou-me as botas num gesto de reminiscência maternal dos tempos em que ainda acreditava que eu podia vir a ser o próximo Vítor Paneira. Eu era muito baldas e furtava-me recorrentemente à função de engraxador de botas. Isto, num tempo em que uma bota de futebol era invariavelmente preta. Eu sei que agora o azul esmaltado cruzado com cor-de-rosa choque (não é brincadeira, elas existem) faz furor. Mas na altura as botas serviam para chutar a bola. E a bola, na altura, era uma coisa chamada Mikasa que fazia “peiiiim” quando nos batia na cabeça. Enquanto me tratava das botas, a minha mãe mandou-me uma mensagem que dizia assim «Se alguma vez me passava pela cabeça voltar a engraxar-te as chuteiras, filho» e confesso que me comoveu, por um lado, e, mais importante, me fez sentir que ainda posso vir a ser detectado pela equipa de prospecção do Benfica – quando tens a tua mãe a engraxar-te as botas de futebol, tens todo um futuro à tua frente.
A minha mãe entregou-me as botas ontem, quando fui ter com ela ao Hospital de Santa Maria, para visitar o meu avô materno, que lá está internado. Sofreu um AVC na segunda-feira. Aparentemente, não deixou mazelas graves. Mas preocupa-me, como é evidente. O meu avô materno sempre foi o símbolo do Sporting na minha família, ao contrário do falecido Domingos, o meu paterno, aquele que me ensinou a ouvir os relatos da Antena 1 («a Renascença não, que é só beatos»). A falta do meu avô Benfiquista é um vazio demasiado grande. Gostava que não me levassem também o Sportinguista, com quem aprendi a lidar com a rivalidade, o oposto, a vitória leal e a derrota dolorosa, a felicidade ou a infelicidade que à mesa do almoço de domingo muitas vezes não podiam ser partilhadas.
Na terça-feira, enquanto o meu avô estava dentro daquelas estranhas máquinas que fazem TAC’s para que alguém conseguisse finalmente diagnosticar alguma coisa com pés e cabeça, eu estava enfiado numa sala de reuniões a discutir com uma comissão de trabalhadores exigências, intransigências e alguns detalhes mais flexíveis daquilo que será, muito brevemente, o meu despedimento (juntamente com quase mais 50 pessoas). Seriam umas seis e um quarto da tarde e, pela primeira vez desde o início de todas estas coisas que me têm acontecido nos últimos tempos, senti uma espécie de revolta, provavelmente filha de uma detestável auto-comiseração que, por vezes, vem ao de cima. Foi qualquer coisa parecida com raiva, mas uma raiva muito magoada, que vinha num pensamento mais ou menos assim «porquê eu? Eu só queria estar a ver o Benfica». O Benfica estava a perder e a jogar muito mal. Mas o que mais me doeu foi não poder vê-lo.