segunda-feira, 17 de setembro de 2012

O meu País e um par de botas

No sábado saí à rua com o povo e manifestei-me. Muito eu me manifestei no sábado! – e vi gente a manifestar-se: vinham de apitos, tachos, assobios, buzinas e aplausos, palavras de ordem, gritos em desordem e entrou até o sino da Igreja de Nossa Senhora de Fátima a repique, dando um toque mais ou menos cristão, mais ou menos sacristão, a um desfile democraticamente laico. Caminhei vários quilómetros e fi-lo de botas. Imaginei esta medida como preventiva – “não vá dar para o torto… sempre magoa mais que os chinelos” – mas a ideia saiu-me mal calculada, revelou-se uma falha estratégica, até porque a paz e a civilidade imperaram, felizmente. Depois de tanto tempo em liberdade, os meus pés ressentiram-se da opção pela dureza em detrimento do conforto e agora tenho um buraco no calcanhar direito. Um buraco revolucionário, aliás.

Isto lembra-me um episódio que o meu pai conta com orgulho ingénuo. Certo dia, há muitos anos, o Sporting estagiava em Mafra. O meu pai passou de carro por alguns dos jogadores que vinham descontraidamente do treino no relvado do mítico Estádio do C.M.E.F.E.D. – a sigla lê-se mafrensemente «cemiféde» e significa Centro Militar de Educação Física, Equitação e Desportos (entretanto, subtraíram ao nome a “equitação”, mas diz-se “cemiféde” à mesma) –, desciam a rua para o Hotel Castelão já em chinelos. Reparou no Cadete, que tinha pensos nos calcanhares. Era uma equipa de luxo a desse Sporting, que tinha os búlgaros também. O meu pai atirou então com desplante «ó Jorge, tu pede umas botas novas ao teu presidente que essas fodem-te os pés todos», ao que o Cadete respondeu com um sorriso gentil. Os pares de botas nem sempre são fáceis no trato, raramente são amáveis, ao contrário de Jorge Cadete. Hoje lembrei-me disto enquanto colocava o penso no calcanhar.

Foi uma manifestação das grandes, que juntou uma multidão rara, pela quantidade e pela diversidade. É estranho ver-se tantas pessoas todas juntas por algo em comum quando quase tudo nelas é diferente, dos interesses à roupa que vestem, da formação que têm ao dinheiro que ganham. Da cor da pele ao clube que amam. São demasiadas diferenças em tão poucos metros quadrados. E, no entanto, estávamos todos juntos e absolutamente de acordo.

Há momentos em que as diferenças importam pouco. Existe sempre um bem maior que nos une e nos puxa no mesmo sentido. Mas nem sempre é fácil aceitar essa unanimidade necessária, construída não por amor ao próximo mas por amor ao que nos é comum, com tantas pontas soltas, tantos antagonismos e tantas ignorâncias que temos uns dos outros. Eu não conhecia aquela rapariga de rastas, com uma tatuagem no pescoço, que tocava tambor num bidão de plástico azul e ora defendia qualquer coisa que eu não percebi muito bem, ora atacava o inimigo óbvio, aquele alvo fácil na testa do Pedro, o primeiro-ministro que só tem amigos no facebook, acho eu.

Houve alturas em que me desliguei e olhei em redor e me desidentifiquei, porque esquecia o que me levara ali. A certa altura, depois de passarmos no ponto de alta tensão na Avenida da República, diante do prédio onde, dizem, está instalado o FMI, chegámos a novo sítio de confrontos. Debaixo da Casa do FC Porto em Lisboa, onde alguns senhores, portistas, claro, assistiam da varanda ao passar do cortejo. Assobiou-se e insultou-se com grande despudor e sentido de inconsequência. Houve um ou outro que acendeu discussão com os portistas e estes reagiram com tranquilos «cala-te, corno!» e adornos feitos com as mãos. Deu mais para rir do que para ofender. Porém, despertou-me. Foi aquele momento em que o cosmos se alinha dando significado lógico a todas as coisas.

Daí em diante, sempre que uma ladainha revoltada se levantava num qualquer coro da multidão, eu imaginava na minha cabeça

«sou de um Povo lutador
Que hoje luta com fervor
Coooontra o seu maior rival
Os senhores de Portugal»

e apesar de um certo remorso por adulterar sem licença o Hino do meu Clube, considerei que a ocasião era de urgência e a minha falta justificada. Por vezes, trocava o último verso por «o terror do capital». Em momentos de maior hesitação e dúvida, prosseguia até «ser Benfiquista é ter na alma a chama imensa» e sentia um novo alento, acendia-se em mim um espírito de fraternidade e compreensão, mesmo por quem ali não era Benfiquista, porque a nossa luta era só uma e precisávamos de ânimo e estávamos todos do mesmo lado. Nasci Português por consequência de decisões geopolíticas que antecederam a minha vinda ao mundo, é certo. Mas foi graças a isso que nasci naturalmente Benfiquista. Estou muito grato ao meu País – não só por isso, claro, mas também por isso: porque existe e eu existo nele e sou do Benfica. Eu gosto muito meu País, quero-lhe muito bem. O nosso País é como o nosso Clube, deve ser tratado com muito amor e com muita dedicação, para que continue a existir forte, a olhar para o futuro, cheio de esperança, cada vez mais vivo.

1 comentário:

Vítor Marcelino disse...

Bom texto :)...agora pomada para o buraco no calcanhar revolucionário...