Não era uma festa qualquer. Não só se tratava do aniversário de uma senhora por quem tenho apreço em doses generosas, como requeria um determinado preceito: o dress code era "figuras dos anos '80", com alguma flexibilidade para personagens que marcaram a década que se seguiu. Madonnas contei cinco e Spice Girls apareceram pelo menos 12, sendo que 7 ou 8 eram a ginger spice, aquela que usava uns tamancos grandes e pintava o cabelo de encarnado - opção que é sempre de louvar. Por uma questão que a lógica faz o favor de justificar, fui de António Variações: de uma penada, defendi a pop nacional, cantada em português, vesti calças encarnadas e usei brincos sem motivos para ficar ralado e dei uso substancial e vistoso a esta barba que uns dias me orgulha e outros me transtorna. Foi uma bonita festa, pelo menos a parte de que me lembro.
Enquanto o rei da pop portuguesa verificava se os cães dormiam confortáveis, o rei da pop americana passava lá por trás, só para aparecer na fotografia.
Hoje, a viagem de regresso foi penosa: saímos tarde, chovia muito, a seguir veio nevoeiro e eu não tinha como ver o jogo, que começava dentro de hora e picos. Devíamos estar na zona da Mimosa - importa dizer que fizemos e costumamos fazer a viagem pela estrada nacional, que eu para esbanjar com chulos já me basta fazê-lo com a Segurança Social, a EDP, a EPAL, a Galp, a Caixa Geral de Depósitos, todas as entidades bancárias que eu salvo com os meus impostos e o Estado Português, de um modo geral - quando, praticamente em desespero, decidi ligar o rádio no telefone (o rádio do carro não lê CD's nem apanha FM, AM ou onda curta - mas lê mp3 em pen, é um rádio muito moderno). A primeira rádio que apanhei foi a Renascença, com comentários do Pedro Azevedo, e pensei logo para comigo «esta merda vai correr mal». No momento em que alguém do Benfica - que deve ser de uma modalidade amadora jogada com o abdómen, visto que nunca faz a coisa bem feita - se preparava para bater mais um canto, decidi «vou aproveitar o tempo morto e procurar a Antena 1». Ainda o Ricardo engonhava para bater o pontapé de baliza quando a sintonia ficou perfeita e pensei de novo, quase em silêncio, «isto não vai ser fácil mas ainda vai ao sítio, cheira-me a penalty nos descontos».
O meu plano para o resto da viagem era, nesse momento, bastante simples: chegar Alcácer do Sal um pouco antes das nove e alegar uma fome insuportável e potencialmente letal, sugerindo, em simultâneo, repasto personalizado e distinto na pequena maravilha que é o Hortelã da Ribeira, o único restaurante daquela cidade onde me são garantidos dois luxos: SportTv e uma cozinha a roçar a excelência.
Os ovos com espargos estavam deliciosos, a açorda de amêijoas com espinafres (na foto) foi uma agradável surpresa para este palato inculto, o jogo estava parado e foi continuando assim, o vinho caseiro, muito nobre, tinha 15 e meio e o "meio Bushmills" acabou por ser oferta da casa, julgo eu que devido a "simpatia de Benfiquista".
Enquanto a Lady Verde se atirava a uma sobremesa de frutos secos com mel, eu, inspirando-me no guarda-redes da Académica, empatava tempo como podia antes de cada colherada numa açorda que arrefecia tão rapidamente quanto se aproximava o minuto '90. E foi entre a última colherada e um foda-se profundo e sentido com origem e destino no Carlos Martins que explodi «é penalty, caralho!» para espanto dos (felizmente) poucos presentes. Em minha defesa, indaguei apenas «então não é penalty?!», tendo recolhido compreensivas anuências e um complementar e enfático «em qualquer parte do mundo» de um senhor numa mesa do canto que estava a beber um bagacinho.
Pedi o café e um toquezinho de Bushmills, perguntei se se podia fumar, trouxeram-me tudo e mais um cinzeiro. Acendi o cigarro - um AC, vindo directamente do Lobito e que aconselho vivamente a quem está cansado das manhas da Phillip Morris e das cascas de eucalipto da Tabaqueira - e o Lima partiu para a bola. Lá foi ele, devagarinho, e devagarinho caiu o Ricardo e depois o Lima chutou, já de força. Foi, quanto a mim, um dos melhores golos da época, um milagre de golo, como o são todos os que sucedem na desesperança e na descrença: na minha cabeça, o Lima escorregou, o Lima tropeçou, a bola saiu torta, a bola bateu na barra, a bola bateu no poste, a bola entrou mas o árbitro mandou repetir e expulsou o Lima, aconteceu de tudo um pouco durante aquela caminhada lenta e tortuosa do Lima em direcção à bola. Já estava a bola dentro da baliza e o Lima com a camisola na mão a festejar euforicamente quando eu disse «foda-se, foi golo, finalmente, porra!». Depois disso, pedi a conta, acabei o Bushmills, fumei mais dois cigarros de seguida e com muita urgência, paguei e saí. Estava eu à porta quando o senhor do bagaço me pergunta «então e não bebe um bagacinho?» e eu «já bebi, já bebi... mais não posso» e ele «é que pagava eu... o senhor é um bom Benfiquista».
Chegámos a casa tarde, mas chegámos bem. Alimentados no corpo, no paladar e no espírito.
1 comentário:
como são perfeitos os palavrões de bola.
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