segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

Açorda de espinafres

Ontem ninguém me viu no Estádio da Luz. Em vez de aproveitar a oferta do Dia dos Namorados para dar seguimento ao processo, que se adivinha lento e penoso, de conversão da Lady Verde ao saudável Benfiquismo, fiz questão de a acompanhar numa expedição ao Algarve que tinha como principal propósito a participação numa festa de aniversário.

Não era uma festa qualquer. Não só se tratava do aniversário de uma senhora por quem tenho apreço em doses generosas, como requeria um determinado preceito: o dress code era "figuras dos anos '80", com alguma flexibilidade para personagens que marcaram a década que se seguiu. Madonnas contei cinco e Spice Girls apareceram pelo menos 12, sendo que 7 ou 8 eram a ginger spice, aquela que usava uns tamancos grandes e pintava o cabelo de encarnado - opção que é sempre de louvar. Por uma questão que a lógica faz o favor de justificar, fui de António Variações: de uma penada, defendi a pop nacional, cantada em português, vesti calças encarnadas e usei brincos sem motivos para ficar ralado e dei uso substancial e vistoso a esta barba que uns dias me orgulha e outros me transtorna. Foi uma bonita festa, pelo menos a parte de que me lembro.

Enquanto o rei da pop portuguesa verificava se os cães dormiam confortáveis, o rei da pop americana passava lá por trás, só para aparecer na fotografia.

Hoje, a viagem de regresso foi penosa: saímos tarde, chovia muito, a seguir veio nevoeiro e eu não tinha como ver o jogo, que começava dentro de hora e picos. Devíamos estar na zona da Mimosa - importa dizer que fizemos e costumamos fazer a viagem pela estrada nacional, que eu para esbanjar com chulos já me basta fazê-lo com a Segurança Social, a EDP, a EPAL, a Galp, a Caixa Geral de Depósitos, todas as entidades bancárias que eu salvo com os meus impostos e o Estado Português, de um modo geral - quando, praticamente em desespero, decidi ligar o rádio no telefone (o rádio do carro não lê CD's nem apanha FM, AM ou onda curta - mas lê mp3 em pen, é um rádio muito moderno). A primeira rádio que apanhei foi a Renascença, com comentários do Pedro Azevedo, e pensei logo para comigo «esta merda vai correr mal». No momento em que alguém do Benfica - que deve ser de uma modalidade amadora jogada com o abdómen, visto que nunca faz a coisa bem feita - se preparava para bater mais um canto, decidi «vou aproveitar o tempo morto e procurar a Antena 1». Ainda o Ricardo engonhava para bater o pontapé de baliza quando a sintonia ficou perfeita e pensei de novo, quase em silêncio, «isto não vai ser fácil mas ainda vai ao sítio, cheira-me a penalty nos descontos».

O meu plano para o resto da viagem era, nesse momento, bastante simples: chegar Alcácer do Sal um pouco antes das nove e alegar uma fome insuportável e potencialmente letal, sugerindo, em simultâneo, repasto personalizado e distinto na pequena maravilha que é o Hortelã da Ribeira, o único restaurante daquela cidade onde me são garantidos dois luxos: SportTv e uma cozinha a roçar a excelência.

Os ovos com espargos estavam deliciosos, a açorda de amêijoas com espinafres (na foto) foi uma agradável surpresa para este palato inculto, o jogo estava parado e foi continuando assim, o vinho caseiro, muito nobre, tinha 15 e meio e o "meio Bushmills" acabou por ser oferta da casa, julgo eu que devido a "simpatia de Benfiquista".

Enquanto a Lady Verde se atirava a uma sobremesa de frutos secos com mel, eu, inspirando-me no guarda-redes da Académica, empatava tempo como podia antes de cada colherada numa açorda que arrefecia tão rapidamente quanto se aproximava o minuto '90. E foi entre a última colherada e um foda-se profundo e sentido com origem e destino no Carlos Martins que explodi «é penalty, caralho!» para espanto dos (felizmente) poucos presentes. Em minha defesa, indaguei apenas «então não é penalty?!», tendo recolhido compreensivas anuências e um complementar e enfático «em qualquer parte do mundo» de um senhor numa mesa do canto que estava a beber um bagacinho.

Pedi o café e um toquezinho de Bushmills, perguntei se se podia fumar, trouxeram-me tudo e mais um cinzeiro. Acendi o cigarro - um AC, vindo directamente do Lobito e que aconselho vivamente a quem está cansado das manhas da Phillip Morris e das cascas de eucalipto da Tabaqueira - e o Lima partiu para a bola. Lá foi ele, devagarinho, e devagarinho caiu o Ricardo e depois o Lima chutou, já de força. Foi, quanto a mim, um dos melhores golos da época, um milagre de golo, como o são todos os que sucedem na desesperança e na descrença: na minha cabeça, o Lima escorregou, o Lima tropeçou, a bola saiu torta, a bola bateu na barra, a bola bateu no poste, a bola entrou mas o árbitro mandou repetir e expulsou o Lima, aconteceu de tudo um pouco durante aquela caminhada lenta e tortuosa do Lima em direcção à bola. Já estava a bola dentro da baliza e o Lima com a camisola na mão a festejar euforicamente quando eu disse «foda-se, foi golo, finalmente, porra!». Depois disso, pedi a conta, acabei o Bushmills, fumei mais dois cigarros de seguida e com muita urgência, paguei e saí. Estava eu à porta quando o senhor do bagaço me pergunta «então e não bebe um bagacinho?» e eu «já bebi, já bebi... mais não posso» e ele «é que pagava eu... o senhor é um bom Benfiquista».

Chegámos a casa tarde, mas chegámos bem. Alimentados no corpo, no paladar e no espírito.

1 comentário:

bjorn disse...

como são perfeitos os palavrões de bola.