sexta-feira, 30 de agosto de 2013

Episódios de uma barbearia de bairro

E discursava o barbeiro, como um sábio, de roda de um senhor de meia idade que aparava um corte muito clássico

-... porque a nossa equipa... ahn, ao contrário da deles... o nosso grupo nota-se que está unido. É um bom grupo...

Ao fundo da barbearia, folheando distraidamente A Bola, diz outro senhor

-Mas qual grupo? Não encontro o vosso... Já li isto de uma ponta à outra...

-Ó homem, o grupo... a equipa.

-Os grupinhos é que dão cabo das equipas. (sempre a ler o jornal, sem levantar os olhos do papel) No Benfica foi o dos russos, primeiro. E depois, foi o dos afilhados do Artur Jorge... esse filho de uma puta de média dimensão - porque naqueles genes, nada pode ser grande.

-Então, ó sôr Abílio... (tudo isto dito entre longas pausas, prolongadas por um sorriso desdenhoso que se intrometia na frase como um sinal de pontuação) e para amanhã, está com fé?

O barbeiro lançou ao sôr Abílio a pergunta, o olhar e o sorriso como três setas de pigmeu e suspendeu o tchic tchic tchic das tesouradas. O sôr Abílio nem levantou os olhos da página de jornal

-Este Rui Moreira... é um miserável, pá... Consegue ser pior que o outro bêbado. Esse ao menos... a gente dá o desconto.

-E o derby, sôr Abílio? O nosso derby? Não me diga que está com medo...

Houve um momento de suspensão, como se o universo de toda a barbearia tivesse sido castigado pela comissão disciplinar: nada acontecia. Até que o sôr Abilio fechou finalmente o jornal.

-Queres com Cardozo ou sem Cardozo?

Tchic tchic tchic tchic tchic tchic tchic tchic...

domingo, 25 de agosto de 2013

Da dificuldade de compreender o que é paradoxal e da impossibilidade de aceitar o que é inaceitável

«O Rodrigo?!... Oh, o Rodrigo é o melhor marcador de todos os tempos lá dos sub-21 espanhóis, mas tu já viste aquela equipa? Aquilo é uma equipa de sonho. Com aquela equipa, qualquer um é o melhor marcador de todos os tempos!»

Ouvi a frase à saída do Estádio e achei que era minha obrigação partilhá-la, registá-la, deixá-la para a posteridade. "O Benfica", esse conjunto heterogéneo, essa multidão diversa e dispersa, essa tribo sem raça, é constituído por muitos Benfiquistas diferentes. Para o bem e para o mal. Foquemo-nos no mal: há raciocínios singulares que, quando extrapolados, podem explicar muitas reacções da massa que compõe "o Benfica". Como é evidente, não confio muito na democracia. É uma ferramenta torta, enviesada.

Não consigo aceitar lenços brancos que se tiram do bolso quando se está a perder e que são euforicamente atirados ao ar no momento do golo. Não posso aceitar. Manter ou despedir um treinador é uma decisão fundamental para o destino do Clube, para o futuro da equipa. Não podemos ser levianos nem distraídos nem voláteis: temos de ser convictos. Não se trata de defender Jesus (que defenderei se achar que é possível ele ter mão na equipa - tenho dúvidas sobre este assunto) ou querer que Jesus saia (uma "refrescada" no balneário seria benéfica, caso se verifique que o treinador perdeu controlo - mas também não tenho a certeza que Jesus tenha perdido o pé); trata-se de exigir seriedade aos Benfiquistas. Eu sei que cada um pensa e diz aquilo que quiser. Pois bem: era isto que eu queria dizer, não me levem a mal.

Maxi, Lima e Cortês. Cortês não é apenas cortês: é um gentleman dos pés à cabeça, embora lhe falte qualidade, tanto nuns quanto noutra. Mas é gentil e sabe dar passagem a quem quer que se cruze com ele. Já ele próprio a cruzar é um bocadinho menos que assustador. No sentido em que "menos" significa "pior". Maxi, o meu querido Maxi, fez dos piores jogos de que me lembro com a Camisola vestida. Lima não é um ponta-de-lança, é um boicote ao golo (tal como o fora contra o Estoril, num jogo que haveria de nos custar o campeonato). Não me lixem: quando se constroem 8, 9, 10 ocasiões claras de golo que se falham e se tem um jogo controladíssimo e, depois, se sofre um golo com auto-assistência delicadinha, não é assoando um treinador com cleenexes que a coisa se resolve.

O ano passado gozei com os sportinguistas por terem festejado o segundo golo e a vitória por 2 a 1 contra o Gil Vicente como se de uma final da Champions se tratasse, com Sá Pinto aos comandos e, sim, a minha língua deita um líquido amargo. Salva-me um consolo - pequenino mas confortavelzinho: sentir que festejar com pouco é melhor do que amuar com nada. Deve ser a isto que se chama "humildade". Ok, já percebi, não é um tema complicado. Agora, podemos passar às vitórias gordas?

Vestir um par de calças

Há precisamente três semanas e um dia que a minha indumentária não sofre variações relevantes: visto uns calções de ganga, uma t-shirt ou uma camisa e enfio os chinelos. Mas hoje o meu dia é solene: vou inaugurar o meu cativo, estrear a minha casa nova. Vou vestir um par de calças, calçar os meus melhores ténis e atar no pulso o cachecol vintage.

Há três semanas e dois dias não me vesti: escrevi a carta de demissão, terminei o que me faltava fazer e deixei-me ficar por casa, como um vagabundo que tem a sorte de ter tecto, a desfrutar do prazer de agir de acordo com aquilo em que acredito. Há três semanas e três dias - e em muitos outros dias antes desse -, eu vestia camisas e calças, aparava a barba e o cabelo, mantinha-me, como se diz, "apresentável". Hoje sairei de casa com o cabelo desgrenhado e por aparar e ainda com a barba que o Benfica que me deu e que eu corrigi uma boa dúzia de vezes - mas que mantenho intocada há três semanas e dois dias, pelo menos.

Passo os olhos pela Imprensa enquanto faço tempo para ir para a Luz, Lisboa ardeu há 25 anos e eu vi na televisão. Hoje é um dia solene, de memórias fortes, de incêndios passados, de fogos por apagar e de incendiários à solta - um grupo de sócios marcou uma manifestação para as três da tarde nas imediações do Estádio. A escassa hora e picos do pontapé de saída. Não se faz. Partilhando das suas dores, preocupações e boa parte das exigências, não estou com eles. Primeiro está o Benfica e hoje joga o Benfica.

Lisboa já ardeu o quanto baste, mais que uma vez. Vou tomar um banho longo e cuidado que o dia é solene.

quinta-feira, 22 de agosto de 2013

Falta-me Pablo Aimar

Dantes tínhamos esperança, depois ficámos confiantes. Às tantas, tínhamos até a certeza na vitória. Porém, o céu decidiu cair-nos em cima. A tudo isso, reagimos com lágrimas de inconformismo, mas também com a dignidade de quem sabe perder e o orgulho de quem reconhece aos seus jogadores o esforço e a dedicação de verdadeiros vencedores. Fomos cavalheiros no meio dos destroços.

No fim, chegámos ao Jamor vestidos a rigor e cheios de Benfiquismo. Bigodes, bonés e bandeiras para fazer a festa. E a festa não era ganhar. A festa era ser do Benfica e estar ali. Mas não podia ter acabado assim. Nós não merecíamos a inglória de uma equipa que desiste. Sobretudo, não merecíamos que esse final fosse o princípio do fim de uma era. Uma bonita era que não obteve resultados condizentes na forma de taças. Mas uma era que acreditei ser de renascimento, de regresso à condição que, ao longo de mais de um século, foi sendo construída e legitimada.

Compreendo hoje que essa era acabou, que não regressámos a sítio algum. E não acabou no desvio do Sami nem tão pouco no empurrão do Cardozo. Acabou no princípio do meu desalento quando, incrédulo, vi o Vitória fazer um-igual. Faltou-me então a voz, a força nas pernas, o discernimento e uns míseros 12 minutos de Pablo Aimar com a minha camisola. O futuro próximo estava escrito: havia um vazio à minha frente.

Quando a lista de convocados é publicada ou, mais tarde, o onze inicial é anunciado, eu olho e não encontro o que procuro. Se são a fé e a paixão quem me move, é, do mesmo modo, a esperança quem me alumia. E essa eu não encontro. Os jogadores estão lá e eu sei que são bons. Merecem o meu respeito e não esqueço o que fizeram por mim. Mas não me inspiram e eu não se conseguirei inspirá-los como devia. E isto de fazer-me de vítima faz-me sentir culpado, porque o Benfica parte de mim, sou eu e os milhares que lá estão quem carrega e carregará - e tem de carregar sempre - o Benfica ao colo. Mas faltam-me forças.

O Benfica é o meu espaço irracional, puro, exclusivamente emotivo, romântico, poético e trágico. E é no Benfica que encontro os meus ídolos. Mas eles não estão lá. Não me funesmorem, pá, eu quero um ídolo, porra!

quarta-feira, 21 de agosto de 2013

Degraus inglórios

Estava a apanhar a roupa, antes de almoço, do estendal das traseiras, quando ouvi um ruído. Olhei para baixo e vi a tartaruga da minha vizinha de baixo a sair do seu caixote com água. É um caixote muito pequenino e o bicho, apesar de pré-histórico, há-de ter sentido o apelo da liberdade, do mundo lá fora. Decidiu partir à descoberta do universo, naturalmente. Por azar, o terraço onde se encontra é também ele pequenino e tem muros altos.

Apercebendo-se da dimensão reduzida do seu cosmos, a tartaruga tentou trepar os três degraus que aí existem e que levam apenas a mais uma parede intransponível. Apreciei a perseverança do animal, que conseguiu subir o primeiro degrau, sem ter noção do quão inglório era o seu esforço. A meio do segundo, no entanto, caiu e ficou de carapaça para baixo, naquela posição que inspira, ao mesmo tempo, riso e compaixão.

Suspendi a apanha da roupa quando ia começar a recolher e dobrar as t-shirts. Senti alguma aflição pela situação complicada do pequeno animal. E dei por mim, num reflexo inusitado, a fazer analogias estapafúrdias. Pensei no meu Redpass, reluzente e ainda por estrear, que faz de mim efémero proprietário de um lugar escolhido com cuidados e sentido estratégico, na curva mais bonita do Estádio.

Imaginei-me naquele anfiteatro gigantesco mas opressivo ao ponto de parecer do tamanho do terraço da minha vizinha, eu a tentar subir degraus para não chegar a lado algum ou para ver uma equipa que nem história fez, de pernas para o ar, a fazer-me pena.

A tartaruga entretanto conseguiu dar a volta sozinha. Balançou-se e caiu de pé. Eu aplaudi e cantei «tenham cuidado, ela é perigosa...» e depois, embaraçado, apanhei as t-shirts que restavam e as toalhas de praia.

sexta-feira, 2 de agosto de 2013

Meu querido mês de Agosto

Na escola primária - na minha velha escola primária -, a Dona Laura ensinou-me que o Emigrante é a pessoa que migra para fora do seu país. Era uma definição simples que não demorei a apreender nem, tão pouco, a saber opor à de Imigrante - imediatamente percebi que eram emigrantes de outras paragens que se radicavam no meu país. Eu era uma criança que aprendia facilmente determinadas coisas.

Com o passar dos tempos veio o toldar dos conceitos, formaram-se-me preconceitos, preguei estereótipos nos pensamentos e passei a presumir coisas sem grande fundamento ou justificação. Por exemplo, os amigos que tenho espalhados pelo mundo - pelo Brasil, pela Inglaterra, pela Austrália, pela Coreia do Sul, por Angola, por Moçambique - não são, para mim, "emigrantes". São "pessoal que está lá fora". Não trabalham na construção civil nem a lavar escadas, não fugiram de comboio para a França para dar serventia, para a Suíça - para fazer chocolates e relógios, suponho -, nem para o Luxemburgo fazer o que quer que seja que se faz lá no Luxemburgo - deve ser dinheiro. Os meus amigos que estão lá fora não vêm de Audi A4 vermelho, com matrícula amarela, atravessando a Ibéria inteira para passar férias no parque de campismo de Monte Gordo e isso tira-lhes uma batelada de créditos no acesso ao estatuto de "emigrante" segundo os meus requisitos.

O emigrante, tal como eu o imagino, é uma categoria muito específica da portugalidade. As características que espalha, com generosidade, da respectiva terra-natal às praias cálidas e sobrelotadas do Sul do país, embelezam-me o mês de Agosto provocando-me sentimentos nem sempre fáceis de identificar ou conjugar. Há um lado nostálgico e melancólico que se acende em mim quando observo famílias de quatro gerações, cunhados, primos e avós, com farnéis e guarda-sóis, nas dunas da Galé. Imagino-os trabalhando e vivendo um ano inteiro com o pensamento focado naquele mês específico em que voltarão a ver os familiares distantes, as paisagens da sua infância ou, no caso dos mais novos, a conhecer os primos de quem só ouviram falar e as praias que só vislumbraram em fotografias tremidas, tiradas com kodaks descartáveis.

E, se as crianças me aborrecem com os seus guinchos e boladas ou com as cascas de melão que vão perdendo pelo areal, os mais velhos inspiram-me grande empatia, enquanto observam o que é também deles - o nosso Portugal - como quem o perdeu e tudo faz para desfrutar só mais um bocadinho daquilo de que abdicou para poder dar o conforto e o desafogo (que nunca teve) à sua descendência.

E depois há o pai de família. Não me refiro ao mais velho, ao ancião, não. Aponto ao macho alfa, o homem que paga as contas, o que mete a gasolina, o que consulta o mapa. O senhor de bigode com o boné do Benfica. É ele que mais me desperta sentimentos ambivalentes. É nele que encontro a definição de perseverança, a expressão de sucesso conseguido a pulso e com o suor. E é também naquele que reconheço aquele esgar de saudade, aquela ansiedade de rever a sua paixão, de regressar ao solo sagrado. É nele que adivinho o desejo de comprar jerseys encarnados para a toda a família - «menos para as mádâmes... não têm aquelas em cor-de-rosa, do Miccoli?» -, de agarrar o bronze maciço de Eusébio, fotografar tudo quanto mexa, fotografar muito a águia Vitória, que ela mexe-se muito, demorar horas nas filas para tudo e mais alguma coisa nas imediações do Estádio, nas bilheteiras, nas casas-de-banho, nas roulotes, nos torniquetes, nas escadas, na procura dos lugares «ora porra, que isto é uma confusão», «ó amigo, esse lugar é dois sectores mais à frente».

É nos lábios do Pai de Família que antevejo, sí-la-ba-por-sí-la-ba, «este Jesus... ma putain... já devia era de ter saído majé há muito tempe, ué...». E é quando olho para ele que imagino, com carinho, o meu bilhete para ver o Devendra no CCB, amanhã, à hora do jogo. Tenho tempo para o nosso Benfica. Espero que estes nossos compatriotas, forasteiros sazonais, perpétuos visitantes de Agosto, desfrutem à sua vontade do pouco tempo que têm para o nosso Clube. Mas, por favor, tenham cuidado com a minha cadeira.