quarta-feira, 1 de março de 2017

107658 para a GQ: "Nascido a 28 de fevereiro"

"O meu avô Domingos, pai do meu pai, nasceu a 28 de fevereiro de 1918. Teria feito 99 anos ontem, caso ainda fosse vivo. É de uma grande coincidência que o meu avô, o primeiro benfiquista muito antigo que eu conheci na vida, tenha nascido no mesmo dia que o próprio Benfica – apenas 14 anos mais tarde."

VERSÃO INTEGRAL.

107658 para a GQ: "Feios, toscos e maus mas bons"

(Publicado na GQ a 21 de fevereiro.)

Quando aquele homem grande, moreno, barbudo e desengonçado, aquele santo grego chamado Konstantinos, marcou aquele golo, domingo que passou, a minha euforia nos festejos não foi dedicada apenas a ele e ao seu “momentum maradonum”.

O meu grito foi de todos vocês, meus toscos. De vocês, meus patinhos feios que me enchem o coração há décadas com pontapés todos tortos, biqueiradas do outro mundo, cabeçadas à bruta e uma inspiração que ninguém compreende e que o próprio Gabriel Alves seria incapaz de justificar com a sua observação simples “é um jogador com um baixo centro gravitacional”.

Mitroglou, o grego, fez passar aquela bola milagrosa por entre uma floresta de pernas e, por cada perna ultrapassada como um pinheiro derrubado, os nomes dos toscos passaram-me à frente dos olhos, a bola batia nas redes de Marafona e em todas as redes de todos os tempos, sempre aos trambolhões, empurrada pelos pés de Mitroglou e pelos pés Magnusson, pelos pés de Cardozo, pelos pés até de Brian Deane.

Gostava de conseguir encontrar uma maneira de descrever o que sinto por estes homens grandes, bravos e sem jeito para jogar à bola, sobretudo nas horas em que me dão alegrias – o que, olhando para os nomes ali em cima, aconteceu centenas de vezes, várias centenas de vezes. Mas não tenho.

O que eu sinto por eles é praticamente inveja. Porque é preciso ser-se muito bom para, não tendo um talento reconhecível à vista desarmada, a olho nu, se ser tão bom. E assim eles, estes Mitroglous, estes sem-jeito-nenhum, garantiram o seu lugar na história, pelo menos na história que eu hei de contar aos meus filhos e aos meus netos, quando os tiver, uns de cada vez e por ordem, primeiro os filhos depois os netos.

E os toscos conquistaram esse lugar, esse estatuto e este amor que não é bonito nem tem jeito mas que eu sinto por eles, um amor tecido a compaixões condescendentes de cada vez que deixam escapar a bola, de cada vez que a tentam dominar e ela fica três metros lá mais à frente, de cada vez que tentam uma finta que não sai porque não sabem como se faz – e de todas as vezes eu exclamo, com sorriso paternalista, “para a próxima ele consegue”.

Porque isto é gente que não desiste. Eles até podem nem correr muito e fintar só três vezes por ano. Mas estão lá e aguentam e acabam por fazer com que todos acreditem neles, os treinadores, os adeptos, os companheiros de equipa e até os adversários.

E eles, que são toscos e são feios e não têm jeitinho nenhum para nada, marcam aos trinta e aos quarenta golos num ano, enchem-me de alegria e fazem tremer os rivais quando o seu nome é anunciado ao mesmo tempo que o povo delira nas bancadas, “com o número sete… Óscar Cardozo! Bruaaaaaaa”, “com o número 11… Magnusson! Bruaaaaaaa”, ” com outro número 11… Mitroglou! Bruaaaaaaa”.

Vivam os toscos! Viva Mitroglou!

107658 para a GQ: "Também Jonas é amor"

(Publicado a 14 de fevereiro na GQ.)

Hesito ao começar este texto porque receio sofrer represálias, quer em casa quer no estádio. Mas é dia de São Valentim e hoje joga o Benfica, ou seja, temos aqui uma situação.

Creio que não melindro ninguém se traduzir cientificamente a minha bigamia recorrendo à seguinte fórmula: três medidas de amor para uma de Benfica. Não exagero, sou muito apegado à minha namorada apesar de ela achar que há demasiado Benfica entre nós. “Mas vocês estão sempre a jogar?”, “tens sempre Benfica”, “já não posso com o Benfica” ou “já não te posso ver, a ti e ao Benfica” são os modos com que regularmente se refere ao clube ou o menciona em conversa.

Quando nos conhecemos, ela não gostava de futebol nem do Benfica e puxava desinteressada e desleixadamente pelo Sporting. Hoje, odeia futebol, nutre um profundo desprezo pelo Benfica – um desprezo que deriva do ciúme, mea culpa, eu sei – e não sabe ao certo quando é que joga o Sporting (mas espera sempre que eles ganhem). Puxa fervorosamente por Portugal, no entanto, e festejou com bravura na hora abençoada de Eder.

Quando fomos viver juntos ainda eu não era sócio. Ia ao estádio com alguma regularidade mas sem disciplina. No primeiro aniversário que festejei na nossa casa, precisamente 27 dias depois de nos termos mudado para debaixo do mesmo teto, um amigo decidiu oferecer-me de presente uma proposta de sócio. Ela na altura não ligou. Hoje talvez tenha consciência que foi um momento marcante na nossa vida a três – aliás, diria que começou a ter essa impressão quando decorou a data de fundação do Benfica graças ao código de desbloqueio do meu telefone.

A frequência das idas ao estádio foi naturalmente aumentando. E aumentou de tal forma que, após a tragédia de maio de 2013, senti a necessidade de fazer o Redpass – eu e um outro amigo que, desde então, ocupa o lugar ao lado do meu naquela que é a nossa segunda casa (vivemos juntos, fim-de-semana sim, fim-de-semana não, vai para quatro anos).

A nossa vida – minha e da minha namorada – vem sendo, ao longo dos anos, não diria marcada pelo ritmo que Pizzi imprime ao jogo, mas no mínimo condicionada por cerca de 90% dos jogos que o Benfica tem em casa (e mais uns quantos fora). Mas para explicar este tipo de fenómenos já existe Nick Hornby e o seu Fever Pitch, compêndio inatacável sobre a necessidade de um homem – ele próprio (ou eu, no meu caso) – de ir à bola e os efeitos secundários físicos, metafísicos e existenciais de não cumprir esse desígnio, essa função primordial que resulta de um instinto muito próximo do de sobrevivência.

Serve toda esta conversa, meu amor, para publicamente me justificar e pedir-te desculpa e agradecer toda a tua compreensão por este meu plano de Dia de São Valentim que passa por ir ver o Benfica – Borussia Dortmund para a Liga dos Campeões – mas é que, ainda por cima, um dos patrocinadores da prova convidou-me e ofereceu-me bilhete e é para o piso 1, pelo que o mais provável é que haja salgadinhos e, com sorte, uma ou outra cerveja, até porque se trata da Heineken que vai apresentar a nova campanha protagonizada pelo Mourinho, que deve estar em casa, de chinelos, a assistir à partida pela televisão porque o Manchester United joga a Liga Europa e esses não jogam hoje (mas seria extraordinário se também ele estivesse presente).

Há dias em que o meu coração se divide, se dilacera e sofre por não chegar para tudo. É assim o amor e se fosse fácil não era para nós.