segunda-feira, 3 de outubro de 2016

O vestido de noiva

Ela comentou comigo, estava eu ainda à mesa na sala de jantar porque gosto de terminar o meu copo de vinho enquanto executo mais um lance desastroso de xadrez no chess.com e fumo um cigarro, ela estava estendida de lado no sofá, que é na sala contígua, o que faz com que tenhamos de falar bastante mais alto do que falaríamos se estivéssemos como pertence, frente-a-frente ou lado a lado, especialmente quando a televisão está ligada, o que sucede quase sempre, e tudo porque tentamos evitar o recurso ao whatsapp quando nos encontramos na mesma casa, a menos de oito metros de distância, "já viste que o Benfica lançou uma linha de vestidos de noiva?".

Não respondi. Para todos os efeitos, podia perfeitamente nem ter ouvido. "Mas isto existe mesmo? LOL", perguntou ela dirigindo-se a ninguém em particular com aquele riso expresso em letras com que as pessoas se riem agora quando pretendem ser sarcásticas e azedas e más para o Benfica. "Babe, o Benfica pensa em tudo", retorqui. "Até nas nossas mulheres", acrescentei. E espreitei como um gato que estende a cabeça lenta e furtivamente detrás da porta entreaberta. Ela espreitava de volta com um sorriso muito sarcástico naquele rosto sportinguista e magnífico. Apeteceu-me pedi-la em casamento só por causa daquele ar deliciosamente malicioso e para ela aprender que com o Benfica não se brinca, mesmo quando o assunto são os vestidos de noiva.

"Tudo muito bonito" disse ela, virando-se de novo para a TV, citando-me das vezes em que cito um senhor de uma loja chinesa que dizia sempre que "neste estabelecimento, tudo muito bonito. Muuuito bonito". E eu voltei ao meu xadrez mas sem conseguir tirar da ideia a imagem dela vestida com aquele vestido de noiva vermelho, justo e do Benfica, já convertida ao Benfiquismo.

Acendi mais um cigarro e observei de novo o tabuleiro onde as brancas eram cada vez menos e as pretas estavam cada vez mais perto e pensei em como seria um absurdo convertê-la e, assim, amputá-la de uma das suas mais fascinantes e misteriosas facetas: a de mulher sportingusita que ama um benfiquista como eu. Não sei se algum dia casaremos. Mas não há vestido de casamento tão valioso quanto isto.

domingo, 2 de outubro de 2016

Por falar em ódio de estimação

Carrillo merece todos os nossos lamentos. Não sei se isto é unânime mas espero que seja. Há um senhor atrás de mim no sector 6 que o ofende sempre que ele toca na bola, o que é não só condenável no que respeita à conduta imprópria e ao linguajar corriqueiro num sítio nobre como é aquele recanto do estádio, como, feitas as contas, é manifestamente desproporcionado, por defeito, se tivermos em conta a quantidade de desaforos e impropérios com que o peruano merece ser brindado - isto é, caso não fôssemos estóicos nesta convicção de que os jogadores do Benfica não são para ofender. Dou de barato que Carrillo é jogador e do Benfica, atenção.

Vem esta introdução a propósito de alguns comentários críticos e legítimos de que fui alvo quando falei sobre Pizzi. É que houve alguma distorção do que foi escrito por quem escreveu esses comentários. O meu fel para Pizzi não é de ódio, é de amor. É um jogador que terá sempre de provar, a cada jogo, que a versão que leva para o campo é a do Pizzi Bom e não a do Pizzi que dá a bola ao avançado do Vitória de Setúbal mesmo à entrada dos descontos, mesmo à saída do meio campo e que nos podia ter custado um campeonato. Que fique claro que o Pizzi não é o meu ódio de estimação. O Pizzi é o meu amor pobre e torto. Mas, ainda assim, no meu coração, está no sector do amor, não do ódio.

Como afirmei no texto anterior, outros houve que carregaram esse alvo nas costas, no peito e sobretudo nos pés. E fizeram-no sempre sob o meu aplauso contrariado ou o meu nariz torcido e lábio franzido, como quem diz "este gajo, pá". Mas o ódio é outra coisa e não tenho pelos que mo despertam ou despertaram a menor estima.

Podemos começar por Carrillo precisamente, um pequeno mercenário fraco de personalidade. Sempre tive preconceito em relação a gente que cospe no prato de onde comeu. Relembro sempre Carlos Martins, essa fraude outrora careca e sempre de curta duração, que será a epítome definidora do conceito. Aplaudi um golo seu, um único. E só porque foi contra o Porto, instituição que surgia, à época, abaixo do próprio Martins na minha escala da estima. Se fosse hoje, agradecia o golo e nem me dava ao trabalho de o festejar.

De volta a Carrillo. Fico surpreendido de cada vez que o veja equipado à Benfica. Depois da surpresa, sinto algum transtorno. Não é uma sensação que se possa agrupar nas frustrações ou das desilusões. É antes uma constatação que me desagrada imensamente: temo-lo connosco, entre nós, na nossa relva e com as nossas roupas. É disso que não gosto. O Carrilo é uma reedição de Fernando Mendes com menos estupefacientes. O Carrillo não merece sequer o meu protesto. Sinto somente um espanto desagradável, negativo, quase embaraçoso, de cada vez que o vejo com aquela camisola vestida.

sábado, 1 de outubro de 2016

We should talk about Pizzi

ou de como Nem Sempre O Amor É Amável.

Vejo muita gente empolgada com Pizzi, até li recentemente apologias do médio. E acho que alguém anda a ver um génio onde eu só vejo um tipo com dupla personalidade e uma lamentável capacidade de passe curto. Onde alguns vislumbram um talento incompreendido, eu pressinto um cidadão com algumas dificuldades para compreender a complexa simplicidade da linha recta, da tabelinha ou da função básica de soltar a bola depois de um ou dois toques. Onde muitos, ao que parece, adivinham um brilhante pensador de jogo, eu aposto que existe um homem de espírito contemplativo que prefere pensar na vida quando é hora de ajudar a defesa.

É possível que Pizzi seja o meu alvo de estimação. A paixão futebolística e o amor clubista nunca foram essências da composição do raciocínio razoável. Já tive outros no lugar que Pizzi ocupa hoje, não no campo mas no meu coração. O último foi Lima. E eu sei que nem sempre sou brilhante de opinião. Creio que não exagero se afirmar que é globalmente aceite a noção de que sou um dos piores profetas do futebol de todos os tempos. Há um ano e 45 dias, por exemplo, previ sem hesitação o inevitável descalabro do Benfica, uma descida aos infernos que terminou no Marquês 9 ou 10 meses mais tarde. Contudo, o facto de prever muito mal não me inibe de formar opiniões.

E às vezes tenho razão. E, mesmo quando me respondem com números, é possível que eu consiga responder com factos. Lima tinha chegado ao Benfica com quase 30 anos e custou 5 milhões de euros pagos a um clube que nos recebia com bolas de golfe. Começámos logo mal. Depois, não festejava golos quando marcava ao Braga, o que é inaceitável - não engulo essa treta do "respeito ao clube por onde passou"; então e o respeito ao clube que lhe paga? E aos adeptos desse clube? Logo Lima, que só passou por 18 ou 19 clubes ao longo da carreira.

Relembro ainda que Lima, apesar de todos os golos que marcou - e marcou aquele golo do Gaitán ao Sporting, por exemplo -, falhou uns quantos que não podia ter falhado. Nomeadamente, uns 16 contra o Estoril numa soalheira tarde de Maio de 2013 e outros tantos, cerca de um ano mais tarde, numa noite amena em Turim. Aplaudi-o em todos os golos mas o meu amor por ele pulsava-me com fel no sangue.

Com Pizzi acontece o mesmo. Não consigo gostar sem mácula de alguém que complica tanto e tantas vezes. Tem o meu aplauso e o meu amor enquanto vestir aquela camisola abençoada, mas nunca terá a minha mão prometida ou o meu olhar embevecido. Os meus sentimentos por Pizzi são tortos como os seus passes. E todos os que pensaram que eu ia dizer "os seus olhos" devem penitenciar-se.