segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

Não digo que vamos ser campeões

Ontem, após a boa vitória do Estoril num campo tradicionalmente difícil, houve quem alertasse - com alguma sabedoria, diga-se - para a possibilidade de os Benfiquistas "andarem outra vez a plantar melões para colher em Maio".

Por norma, dispenso os conselhos no que respeita ao bom senso, sobretudo porque me considero razoavelmente sensato. Não tenho o hábito de festejar antes do tempo e costumo ser céptico até ao último segundo - tirando o ano passado, quando, aos 91 minutos da penúltima jornada, pensei, lembro-me bem, "que se lixe, não festejamos hoje, festejamos para a semana". Não festejámos.

Custa muito perder, sempre; mas custa muito mais perder quando estamos à espera de ganhar. Agora, não sei o que será melhor: deixar fluir, sem disfarces, a felicidade e desfrutar dela quando estamos à beirinha da vitória, libertando o espírito e as amarras pessimistas dos "e se... e se não..." ou aguardarmos serenamente e em contenção um desfecho que nos seja favorável para que festejemos então?

A razão diz-me para optar pela primeira; mas o meu Benfiquismo e a minha razão mal se falam. Na verdade, nem sei se se conhecem. Por mais cautelas que eu use para segurar as euforias, por mais que consiga filtrar o que vai do que sinto até ao que deixo transparecer, a verdade é que a paixão e a fé me reduzem a um dos estados de que mais me orgulho: o do Benfiquista que sente que isto já está ganho.

E eu sei que não está. Estamos em Fevereiro. Nos últimos dois Fevereiros também íamos assim, a liderar a tabela, intocáveis, invencíveis, os mais fortes, os maiores, os futuros campeões. Os donos e senhores da montanha que tem a mania de parir ratos. Mas lá porque eu sei que não está ganho, tal não significa que eu não sinta que vamos ganhar. Como diria Mourinho «não digo que vamos ser campeões. Penso que vamos ser, mas não digo».

Em Setembro eu estava à espera - não no sentido de desejar, mas de contar que acontecesse - de mais um deslize para que o Jesus finalmente caísse, para que a direcção fosse contestada, para que a equipa se desfizesse: tudo me parecia bastante errado, desequilibrado e sem norte. Seis meses mais tarde, vejo o Benfica em primeiro, a mostrar-se superior aos adversários directos e em todas as competições - houve o deslize na Champions mas, ainda assim, um deslize com 10 pontos e algum azar à mistura, nada que envergonhe.

Eu sei que o mais provável é que logo, pelas dez da noite, quando eu vier a subir do Estádio para a roulote, eu venha a pensar «foda-se, como é que é possível?! Porque é que a gente nunca aproveita estes momentos, porque é que temos sempre de falhar?!» Se não for um empate merdoso, há-de ser um penalty habilidoso ou nove falhanços do Lima ou a expulsão prematura do Fejsa ou um frango do Oblak - alguma coisa há-de correr mal. Mas enquanto corre e não corre... obviamente, não digo que vamos ser campeões. Mas há coisas mais impossíveis.

terça-feira, 11 de fevereiro de 2014

Que haja jogo

Não era bem isto que eu tinha em mente quando desejei "um derby inesquecível". Nenhum derby deve terminar mais do que duas horas e meia após o apito inicial, sob pena de agravar os danos nervosos e o desgaste emocional que naturalmente inflige sobre os sofredores apenas porque existe - e acrescente-se que um derby começa a existir muitos dias antes do começo do jogo.

Há menos de um ano, queixava-me que O Derby já não me causava arrepios e dores de estômago como antigamente. Poucos meses passados, aqui tenho a minha resposta: um bónus de 48 horas extra para um sofrimento a que já não estava habituado. E, como se não bastasse a aparente melhoria em termos de menos miséria do lado do rival, a incerteza sobre o que irá acontecer amanhã não se ficará apenas pelo relvado - pelo contrário, passarei aquelas duas horas com um olho na relva e o outro no telhado.

Estou habituado a sair de casa e descer a rua, a caminho de Santa Apolónia, com o cachecol ao pescoço, determinado, sempre apreensivo e concentrado, a caminho do metro que me levará à Luz. Baixo a cabeça, foco-me no chão, nas pedras do caminho, na descida íngreme da Calçada do Forte. Mas consigo sentir os olhares das pessoas e os seus pensamentos «ali vai um Benfiquista», pensam elas, «lá vai ele a caminho do Estádio». Sinto, no meio das minhas conjecturas apreensivas e entre esquemas tácticos ideais que vou elaborando, uma espécie de vaidade, como se eu fosse um bravo artilheiro prestes a embarcar com destino a uma guerra longínqua. «Lá vai ele», suspiram as velhinhas às suas janelas, «tão jovem... vai para a Luz» sussurram para si mesmas, misturando medo, esperança e admiração por este seu soldado desconhecido.

Amanhã saírei de casa bem cedo. Quero apanhar ainda um resto de luz do dia para que as velhinhas possam ver-me passar, de cachecol ao pescoço, e exclamar entre dentes, numa espécie de oração, «que bravo é o nosso menino. Lá vai ele outra vez, sempre corajoso, mesmo perante a intempérie».

Não me censurem pela vaidade - o Benfiquismo concede-me estes pequenos luxos e sempre fui um Benfiquista orgulhoso. Trabalho apenas com a circunstância tentando extrair o melhor de toda a adversidade. E conto ouvir pelo caminho, como se fosse um piropo, «esperemos que hoje haja jogo» e que da janela em frente uma anciã responda de pronto «e que ganhe o nosso Benfica!».

domingo, 9 de fevereiro de 2014

O Sócio Proponente

Afastado do Catolicismo, apesar do tradicional baptismo, não me restavam grandes esperanças de algum dia vir a ser padrinho. Até que o meu amigo Paulo me pediu, há uns dias, que apresentasse o seu filho Manuel - uma Manelinho nascido em finais de Setembro - à magia do Benfiquismo. Foi um grande orgulho para mim esse convite, senti-me profundamente honrado - não tenho palavras que cheguem para descrever a alegria comovida que senti. Hoje joga-se o primeiro derby do Benfiquismo do Manuel. Que o dia fique na história e que um dia eu possa falar-lhe deste jogo, dando-o como exemplo dos mais bonitos derbies.

sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014

Aquela palavra distinta

É uma das mais brilhantes palavras da língua portuguesa e chama-se "foda-se". Com o tempo e o uso, foi-se afastando lentamente do significado primordial que o latim lhe atribuía e a associava a escavação, perfuração, penetração ou rompimento, até se tornar, nos dias que correm, numa arma de arremesso verbal, muito mais do que num signo recheado de significado concreto.

Não se tratando de uma arma das mais pesadas ao nível da ofensa, tem a seu favor o efeito e os sinais de um impulso forte e a verdade franca que só as expressões de abstracção universalmente aceite podem conter. Um "foda-se" é uma explosão rápida mas intensa, simples mas incisivamente clara em relação a tudo o que se pensa e se quer dizer no milissegundo imediatamente anterior ao da sua detonação.

Curta, pobre nos contornos fonéticos, marginalizada em vários contextos sociais e atrelada a um breve mas pesado sufixo que a reflecte na direcção do próprio alvo ou de um abstracto inconcretizável, a palavra "foda-se" é, ao contrário do que a descrição pode sugerir, uma expressão rica em virtudes. Diria mesmo que tem uma existência nobre - sempre digna e composta, coexiste entre banalidades, palavrões e erudição com um à-vontade elegante.

De entre estas virtudes, destaco no "foda-se" uma raríssima - senão mesmo única - qualidade: apesar da sua essência verbal, a palavra nem sempre carece de verbalização. A sua peculiar elasticidade permitiu que, com a cultura, o jeito e o hábito, o ser humano aprendesse a revestir com ela o olhar, os lábios e a testa, acrescentando ao "foda-se" uma dimensão etérea e permitindo, deste modo, que a palavra se mantivesse implacável até no silêncio.

Quando Carlos Dias da Silva perguntou a Sílvio se «trocava a sua carreira pela vida do pai», houve um "foda-se" que se manifestou em todo o seu esplendor - não falo daquele na minha mente, mas antes do outro que, qual aparição, se iluminou na expressão genuína e pura do jogador. Creio que foi o "foda-se" mais bonito que vi em toda a minha vida.