quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

Momento pedagógico

Não sou particularmente dado a superstições. No entanto, sou adepto da correcção no que respeita a procedimentos. Possuo, aliás, certos traços de comportamento obsessivo-compulsivo que me compelem a determinados rigores que, se não forem cumpridos, me causam transtorno e desordem. Por exemplo, nunca fui ao hemisfério Sul, faz-me confusão andar de cabeça para baixo. Ou não piso as divisórias dos passeios. Ou não gosto de ter o pé esquerdo sobre um tapete e o direito fora dele, prefiro sempre manter ambos sobre o mesmo plano ou objecto, isto salvo quando subo escadas, porque evito expor-me ao ridículo de as subir aos pulinhos, a pés juntos. Noto agora que o elemento comum a boa parte das minhas obsessões é o sítio onde tenho os pés.

Há pequenas tarefas e funções que encaro como desígnios. Por exemplo, gosto de desligar a luz do hall de entrada com uma cadência determinada e de acender, logo de seguida e na mesma cadência, a luz das escadas, de maneira a obter a batida inicial do Sunday, Bloody Sunday, e fico bastante aborrecido quando não consigo o efeito desejado - estraga-me o dia.

No que respeita a desígnios e obsessões, a linha que separa o aceitável do absurdo é bastante ténue. Não é fácil encontrar uma explicação coerente, sobretudo quando instado a argumentar relacionando causa e consequência. Há, porém, matérias em que a justificação merece escusa.

Vem esta breve introdução a propósito de um pequeno drama que me afectou, bem como a terceiros, durante o dia de ontem. O que aconteceu foi que me acusaram de mau companheirismo. Privei a minha equipa, os All Fama All Stars, do meu esforço e do meu talento no encontro semanal contra uns certos meninos de Oeiras, que teimam em medir forças connosco. Se a explicação para a minha ausência pode ficar à mercê de espíritos mais ou menos compreensivos, já a justificação para a minha conduta dispensa qualquer tipo de elaboração em termos racionais.

A verdade é simples e clara: recuso-me a jogar à bola em dia de jogo do Benfica. Há vários conflitos de interesses logo à partida. Antes de mais, existe o interesse do Benfica, que será sempre o meu. O Benfica joga, a minha energia é do Benfica. Não é para desbaratar num relvado sintético ali na Ajuda num jogo que não vale nem uma rodada de cervejas. Sejamos sérios.

Há quem veja nisto uma superstição, mas desengane-se quem pensa assim. É uma questão de interesse uno, meu e do meu Clube. O meu desígnio primordial sempre foi estar com o Benfica e o meu deficit de ubiquidade não me permite estar com o Benfica e com os All Fama All Stars no mesmo dia. Houve quem argumentasse «ah, mas é só um jogo da Taça da Liga». De novo: sejamos sérios. Mas acham que me rala a designação ou natureza da competição quando quem entra em campo é o Benfica? Reflictam, meus caros.

terça-feira, 18 de dezembro de 2012

Não quero mal ao Sporting

Conheço boa parte dos 37 sportinguistas funcionais e convictamente activos que restam. Mais precisamente, conheço quatro. É gente que me merece respeito e é por eles e por calcular que, como eles, existirá mais gente de bem a fazer esta penosa travessia de sabe-se lá o quê para vá-se lá saber onde que me controlo. No entanto, que fique claro que não me esqueço de quem, em tempos quase longínquos, espezinhou e tentou humilhar o Benfica, ao ponto de nos vermos obrigados a mandar um egípcio muito moreno e fininho a Alvalade explicar ao André Cruz como se marca um sacana dum livre, por um lado, e aos sportinguistas em geral, por outro, como se enfia uma rolha inchada num buraco estreito e cheio de gás, como o é o gargalo apertado de uma garrafa de espumante baratucho.

Regressei da tournée londrina com um único objectivo: assistir mais ou menos sentado ao Sporting - Benfica desde o seu primeiro minuto. Foi, aliás, uma viagem toda ela contorcionisticamente encaixada entre jogos: partida na manhã imediatamente a seguir ao Barcelona D - Benfica e regresso a tempo de ver o kick-off de Alvalade. Infelizmente, a linha encarnada do metro de Lisboa é muito mais comprida do que parece nos desenhos e demorei cerca de 57 minutos a chegar do aeroporto a Santa Apolónia, mais 12 minutos a subir meia colina com a mochila a rebentar pelas costuras às costas, o que fez com que tivesse chegado à Típica a horas mais que suficientes para irmos já com três de avanço. Para meu espanto, estava zero a zero e eu pressenti que algo estava errado. Indaguei e concluí que era engano meu, impressão minha, pois o Tacuara estava em campo.

Na balbúrdia apática de quem ganha só três a um a um rival decrépito houve quem declarasse desejar ao Sporting a descida de divisão. Há sempre gente que exagera nestas coisas e eu também não me esqueço de quem, em tempos praticamente medievais, espezinhou e tentou humilhar o Benfica, ao ponto de nos vermos forçados a enviar um maxerrequino escanzelado a Alvalade para demonstrar ao André Cruz como se marca um sacana dum livre, por um lado, e indicar aos sportinguistas em geral, por outro, como se enfia uma rolha inchada num buraco apertado e cheio de gás, como o é o gargalo estreitinho de uma garrafa de champanhota da Bairrada. Porém, sou magnânimo e aprendi com os anos a perdoar. Os meus desejos para esta época não chegam a tamanha crueldade - são apenas três e pela ordem que se segue:

- ir de bigode ao Jamor fazer um piquenique de coiratos, febras e entremeadas antes de entrar - de novo: de bigode - no Estádio Nacional para assistir robustamente à final da Taça;

- ver o Lima fazer um póquer;

- festejar o título de campeão no Estádio da Luz, deixando a rotunda do Marquês vaga para os festejos da manutenção sportinguista.

segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

The long winding road

Em Dezembro de 1989 sofri como um verdadeiro pecador: uma aftose impiedosa deixou-me as paredes da boca, a língua, as gengivas e até os lábios em completa erupção. Foram quase dez dias de dores, ardores e fome, muita fome. Recordo-me que até respirar pela boca me causava sofrimento. Ao fim dos dez dias, e depois de uns três ou quatro em que já conseguia comer iogurtes e sopas trituradas - mas, ainda assim, frias -, a minha mãe tinha preparado um bacalhau com batatas e couves, cuidando que eu me encontrava ainda enfermo da ingestão e da mastigadura (como eu odiava bacalhau com batatas!) e, portanto, não comeria. Puro engano: àquele bacalhau, nem a pele lhe sobrou. Foi, de longe, o melhor bacalhau que comi na vida - e digo-o sendo hoje profundamente fã desse peixe que o português salga e seca.

Foram também dez dias de febres altas, alguns delírios e uma reclusão tortuosa, em que nem o meu irmão se podia aproximar em demasia, pois o contágio era, julgava-se, não só possível como provável. Sabendo-se da propensão que o meu irmão tem para o azar, para a poça distraída debaixo do sapato, para a pedra aleatória que lhe atinge a cabeça, foi uma decisão sensata.

Posso dizer que, com apenas dez anos, experimentei a loucura de uma solitária - tirando a parte da latrina e da falta de colchão. E de ter vista para a rua e de não sair de lá barbudo - levei 23 anos de liberdade a atingir este estado. Mas, de resto, fome e isolamento não me faltaram. Foi neste isolamento que tudo começou. Naquele tempo, não havia internet nem TV por cabo; havia dois canais e eu só apanhava um. O Lecas era o ponto alto do meu dia. Sozinho em casa, vi-me obrigado a improvisar com os recursos de que dispunha: playmobil e berlindes.

Tinha em abundância de ambos, berlindes e playmobil. Eram mais de duzentos berlindes, para cima de sessenta ou setenta bonecos. Tinha começado, nesse ano, a jogar nos infantis do Desportivo de Mafra. E, durante dez dias, via-me confinado a um quarto, sem poder aproximar-me de uma bola, de um campo - desde muito cedo fui sendo desviado de uma carreira gloriosa pelos relvados dessa Europa. A necessidade aguça o engenho, ou algo do género, e então decidi fazer o meu próprio futebol. Escolhi os bonecos com que mais simpatizava - o louro, com caneleiras, todo vermelho, chamava-se "Paulo" e era o meu alter-ego: n.º 10 à antiga (como em "Eusébio"), num 4-3-3 que tinha tanto de ingénuo quanto de eficiente: era sempre para esmagar. Os bonecos era eu que os mexia - a mão direita organizava o Benfica, a esquerda manipulava desastradamente o seu adversário. As balizas, num tempo em que as redes longas vieram substituir aquelas de pouca profundidade, eram formadas por cassetes áudio: duas, lado a lado, faziam o fundo da baliza; e duas, ao comprido, desde esse fundo até à face de cada um dos postes. BASF, Sony, Maxell, até velhas edições oficiais dos Ministars, dos tempos do meu ATL (uns dois anos antes), tudo serviu de malha lateral, de fundo longínquo, de rede em cujos buracos um dia Rashidi Yekini haveria de enfiar os braços num festejo imortal.

Eu gostava que as balizas fossem bonitas. Por isso, escolhia as cassetes com mais pinta para as construir. Havia uma cassete feia e sem capa que ficava sempre de fora. Não tinha letras nem símbolos nem era transparente, nem de iron: era opaca e não diza coisa alguma.

A solidão e o isolamento trouxeram-me certas experiências e hábitos. Descobri, por exemplo, o silêncio ou a habilidade para esperar, sem impaciência. E foi graças ao silêncio que descobri os Beatles: ao fim de três ou quatro dias de solidão e de conversas muito espaçadas à hora das refeições, senti que havia um vazio sonoro que podia ser preenchido. Peguei no gravador e leitor de cassetes que o meu pai comprara na Dona Nazaré, ali no lugar da Paz, ou que lhe saiu nuns furos, pouco tempo antes, já não me recordo da providência que me permitiu ter um pouco mais de companhia nesses dias tristes e chuvosos.

E foi entre quatro paredes, atormentado por aftas e febres, que introduzi no gravador e leitor de cassetes a cassete feia e sem letras, uma das que sobrava sempre ao improviso daquele estádio de maravilhas sobre uma alcatifa azul que fez tantas vezes de reconfortante relva verde. Lá dentro tinha os Beatles, numa colectânea que lhes atravessava a discografia - Penny Lane, Strawberry Fields Forever, Lucy in the Sky with Diamonds, todo um mundo se abria em meu redor ao mesmo tempo que o meu mundo se fechava cada vez mais sobre o futebol e a paixão pelo fenómeno florescia.

Nesse tempo as equipas inglesas não jogavam na Europa. Desde a tragédia do Heisel, ficaram todas de castigo durante cinco anos - e o Liverpool durante seis. O meu pai explicou-me que era dos hooligans. Percebi razoavelmente o que isso era. O meu pai também me explicou que o Porto só foi campeão europeu porque "não havia ingleses... assim, qualquer um é campeão". Depois, fomos nós a duas finais intercaladas, que não ganhámos. Mas o certo é que, desde que os ingleses voltaram, nós nunca mais disputámos uma final europeia. O meu pai alguma razão lá havia de ter. «Porque», dizia o meu pai, «o que é que são as competições europeias sem um Liverpool, sem um Leeds, sem um Derby County, sem um Tottenham, sem um Nottingham Forest?!». E aqueles nomes ficavam-me na cabeça. O meu pai nunca gostou dos Manchester United. O Arsenal não lhe dizia nada. Apreciava era o Liverpool, sobretudo. Chelsea, City, etc., isso nem existia. E eu jogava com os bonecos da playmobil e ouvia os Beatles e tentava imaginar como seria o Liverpool a jogar à bola, na Inglaterra. O meu pai dizia «aquilo lá é tudo diferente: conduzem pela esquerda e até os estádios são quadrados - parecem caixas de fósforos».

Uns tempos mais tarde, já eu era saudável o suficiente para poder voltar a detestar convictamente o bacalhau com batatas, um amigo meu comprou um Commodore Amiga 500, até hoje o melhor computador alguma vez inventado. E comprou um jogo: Football Manager. Nessa edição, ainda limitada, só se podia escolher clubes ingleses. Ele escolheu o Liverpool. Eu, desfilando os vários símbolos, fui reconhecendo vários nomes que o meu pai mencionava no seu saudosismo pelos ingleses na Europa. Porém, as cores e o símbolo do Arsenal atraíram-me. Perguntei ao Nuno, o dono do Amiga, «estes são bons?» e ele «são... não é o Liverpool, mas são porreiros». E eu escolhi-os.

E foi pouco tempo mais tarde que tive a honra de conhecer o Arsenal. Numa edição confusa da Taça dos Campeões que já era Liga dos Campeões - ou da Liga dos Campeões que ainda era Taça dos Campeões -, o Benfica foi ao velho Highbury, uma caixa de fósforos tal qual o meu pai descrevera, e começou a perder. Mas depois conseguiu empatar, num jogo de grandes nervos. Depois veio o prolongamento e o Isaías fez uma exibição soberba, ganhámos 3 a 1. No final, o público do Highbury levantou-se e aplaudiu de pé o meu Benfica. Ainda hoje me comovo quando penso nisso e lembro-me do que pensei nesse momento: «tão bom...».

Nesse dia, a minha paixão pelo futebol inglês, que já fora semeada ao som da Peny Lane, nasceu. E o meu respeito - porque não: amor adoptivo? - pelo Arsenal fundou-se em definitivo. Desde então, o meu sonho foi ir a Inglaterra ver a bola. Gozando dos benefícios do tempo livre, fui.

Primeiro, fui ver o Tottenham.

Depois fui ver o Liverpool a Upton Park.

Falhei o Arsenal. Mas metade do sonho foi realizado. E ainda ouvi os "hammers" a cantar o Bubbles. I'll be back.

sexta-feira, 16 de novembro de 2012

Rock n' ball

Regressei a Lisboa depois de cinco dias na minha terra. Cinco dias de glória, que incluíram uma vitória do Benfica, duas vitórias minhas no xadrez em outros tantos jogos e quatro vitórias, robustas e expressivas, em quatro jogos de snooker, perante quatro adversários diferentes (três delas com cheirinho a goleada). Não sei se é dos ares da terra-natal, não sei se poderá ser da esplendorosa comida da minha mãe: certo é que regresso cheio de confiança nas minhas capacidades desportivas, ainda que tenha consciência de que me é muito mais fácil dar um xeque-mate ao 11.º lance ou meter a preta à 5.ª jogada do que fazer um golo no futebol de 7 antes do 20.º jogo (e a minha equipa pode corroborar o que afirmo).

Da ida à minha terra lamento sobretudo a minha escassez de ubiquidade que me impede de uma maneira teimosa de estar com toda a gente com quem gostaria de estar em simultâneo. Quando regresso a Lisboa, sinto sempre que estive pouco com os amigos, com a família, com os próprios lugares onde dantes eu estava sem pensar nisso e de que agora sinto saudades. Compensando, de certa forma, esta sensação de perda, tive a oportunidade de estar várias vezes com um amigo dos tempos de escola. É aquele amigo que acaba por se tornar amigo à força, de tão recorrente que é o convívio. Na verdade, é, talvez e exceptuando o meu próprio irmão, a pessoa com quem mais vezes andei à porrada. Consequentemente, será a pessoa de quem mais vezes apanhei, já que era raro eu levar-lhe a melhor. O João foi um tipo determinante para a consolidação da minha consciência pacifista. Foi sobretudo graças a ele que me surgiu em ideias a máxima «prefere sempre a paz à guerra, principalmente se na guerra estiveres sempre a comer».

Tornámo-nos amigos ainda na adolescência. E fomos sempre os opostos um do outro. Ele era do Sporting, eu nasci de acordo com o que manda a natureza; ele era dos Metallica, eu era dos Nirvana; ele veio a ser baterista, eu toco guitarra e canto. E foi graças a estas diferenças, todas misturadas, que pudemos passar três tardes fechados no seu estúdio, ele na bateria, eu à guitarra, cada um com suas funções, ideias e influências. Tivéssemos ambos sido guitarristas influenciados pelos Rancid, o mais provável era termos passado três tardes fechados na garagem a beber cerveja e a falar de como o punk era bom nos anos 90, com as guitarras ao lado à espera de ganhar utilidade.

Foi com o João que vivi a minha primeira experiência pop. Jogávamos os dois à bola, na equipa da então Escola C+S de Mafra. Ainda não nos dávamos muito bem. Estávamos no 9.º ano e disputávamos a Distrital de Desporto Escolar de Lisboa, que daria acesso à Regional de Lisboa que, por sua vez, acabaria por permitir a passagem ao play-off nacional. Ganhámos a distrital, mas ficámo-nos pela regional. Num dos jogos mais importantes, contra a equipa que rivalizava connosco, fomos a uma escola de um pequeno concelho da zona Oeste. Estávamos habituados a jogar na nossa onde o facto de decorrer um jogo dos campeonatos de Desporto Escolar não era propriamente motivo para folgas nem pausas: ia assistir quem tinha hora livre. Ali, não: a escola parou e assistia em peso ao grande confronto.

Chegámos na carrinha do nosso treinador, professor de Educação Física cujas noções tácticas se inclinavam muito mais para o surf do que para o futebol, mas que era um tipo porreiro e que gostava muito daquilo. Fomos imediatamente recebidos por uma comitiva de maldispostos e bem alimentados rurais que lançou ameaças e piadas - nós vínhamos de Mafra, atenção. Mafra é uma espécie de território perdido, algures entre o ser subúrbio e o ser rural, mas que impressionava quem vinha de sítios mais rurais do que o nosso porque parecia uma cidade cosmopolita, com semáforos e tudo. Já lá vão muitos anos. Agora até temos auto-estradas, só para terem uma ideia.

O ambiente da escola era bastante hostil e a população numerosa, que devia reunir todos os adolescentes do município que não tivessem reprovado na quarta classe, intimidava bastante. O nosso balenário ficava numa cave, na última porta de um longo corredor, próximo do campo mas não propriamente contíguo - ou seja, teríamos de nos equipar e depois atravessar a multidão. Esta ficava separada do recinto de jogo por uma corda à altura da cintura, atada a pequenos postes, a toda a volta do campo. Equipámo-nos no tal balneário, uma espécie de arrecadação que nem bancos tinha e tivemos de pendurar em cada um dos cinco cabides ainda inteiros as roupas de cada dois dos nossos jogadores.

Já equipados, percorremos o longo corredor, subimos as escadas e dirigimo-nos ao campo, acompanhados por uma espécie de escolta de professores autóctones que furavam a multidão. O campo era assim: pequenino, substancialmente inclinado para uma das balizas e cheio de buracos. Para além de buracos, existiam ainda grelhas de esgoto que, pisadas no sítio ideal e com a força certa, produziam aquele efeito Looney Toons que produzem os ancinhos quando são pisados nos dentes. Tenho ideia de um dos nossos se ter lesionado logo de início por entrada imprudente de uma dessas grelhas. Aos cinco minutos já perdíamos por um e o jogo estava a ser um pesadelo, até porque começámos a jogar de baixo para cima.

A arbitragem, em perfeita sintonia com todo o panorama, estava a ser miseravelmente caseira. Ainda assim, aguentámos aquela magrinha desvantagem até ao intervalo. Recolhemos à arrecadação animados por insultos, graçolas e gozos, o que numa pequena vila de província orgulhosamente marcada pela produção (e, por que não, pelo consumo?) viti-vinícola é o mesmo que dizer que fomos enxovalhados com muito maus modos e expressões que, infelizmente, não recordo na totalidade - nem sabem o jeito que me davam para animar esta longa narrativa.

Reunidos na arrecadação, o professor tentava incentivar-nos, dar-nos coragem, inflar-nos com esperanças mais ou menos poéticas, «vocês conseguem, pá... eles não jogam assim tanto», mas o sentimento geral, ainda mais sem o nosso melhor jogador, era de profundo desamparo, de isolamento num planeta que nos era adverso. Queríamos ir embora dali. Cheguei ao ponto de pedir para não jogar mais, «não, Diego, estás a jogar bem, aguenta-te». Não insisti para não parecer mariquinhas. Mas a minha vontade de subir ao campo era quase zero e penso que só a ideia de jogar de cima para baixo acabou por me dar algum alento.

Regressámos ao campo, sempre acompanhados de gestos, ladaínhas e palavras de apreço que, se acontecessem em frente ao Palácio de S. Bento, poderiam gerar uma carga policial justificada. Começa a segunda a parte e o árbitro descobre um penalty contra nós num lance em que o Besugo, que fazia parceria comigo na defesa, leva uma porrada e cai, com o braço enrolado, sobre a bola. Isto dentro da área. Penalty, pois. Eu pedi para sair, que aquilo era uma vergonha, o professor não aceitou a minha demissão e disse-me «a gente consegue, temos é de acreditar» e eu acabei por ficar, mais por compaixão por ele do que por crença. Aplausos e assobios, cânticos vitoriosos, de tudo se ouviu. O jogo estava perdido. Porém, os gritos histéricos vindos de vozes estridentes despertaram-nos para uma realidade nova: também havia ali miúdas. Esta percepção, aos 13 anos, muda muita coisa. E então, ao apito do árbitro amigo, o avançado rural correu para a bola e bateu com força - mas o Banana defendeu com estilo. Era uma nova vida, sorrisos, abraços e uma esperança inédita em cada um de nós: a bola não entrou, porra!

O jogo mudou nesse momento e até o público ficou mais mansinho. Tínhamos a bola e tentávamos fazer golos. A descer fica tudo mais fácil e eles pareciam amedrontados, sobretudo depois de falharem a soberana oportunidade para fazer o 2 a 0. As vozes das raparigas eram já mais audíveis do que as dos rapazes quando sucede o lance, aquele lance que muda a tua vida. Não tenho muito presente a forma como tudo se desenrolou. Nestes momentos, o intelecto desliga-se e deixa que o corpo seja máquina, seja instinto, seja animalidade e depois damos por nós a fazer qualquer coisa quando despertamos do choque de adrenalina. Dei por mim a festejar um golo. Quando todos se dirigiram a mim para festejar euforicamente, percebi que tinha sido eu a marcá-lo. Eu, que nunca arriscava sequer um remate, marcara ali, naquele campo de batalha inclinado, contra todas as probabilidades.

O jogo terminou com o empate: um a um, o que num jogo de futebol de 5 entre miúdos de 13 anos demonstra bem o nível aguerrido e disputado a que se jogou cada lance, cada bola, cada entrada dura das grelhas das sarjetas. Estávamos felizes, vitoriosos, realizados, mesmo vingados. E com medo. Íamos ter de sair do campo, os professores adversários, descontentes com o desfecho, discutiam com o nosso professor. Ânimos exaltados em todo o lado, alunos a mandar bocas, a rodear-nos, e nós a seguirmos rapidamente para a arrecadação onde tínhamos a roupa, na cave, ao fundo do longo corredor. O professor ficou para trás, deu-nos a chave e nós seguimos.

Não houve direito a duche, claro. Nem chuveiros havia ali. Enquanto nos vestíamos, suados e a celebrar um empate que soube a conquista, fomos ouvindo o burburinho crescente à nossa porta. Às tantas, adivinhava-se uma multidão a encher o corredor. A nossa alegria transformava-se, aos poucos, em palidez e a palidez em medo e o medo em qualquer tipo de desespero: sem janelas, sem outra porta, sem professor, estávamos encurralados e à mercê de toda a escola C+S da Arruda.

Entre os sorrisos nervosos à espera que o professor regressasse, um bilhete manuscrito passou por baixo da porta. Vinha dobrado. Alguém, que não eu, pega no papel e lê «n.º5 e n.º7 venham cá para fora». O n.º 7 era eu, inspirado no Vítor Paneira. O 5 era o João - penso que por causa do Fernando Couto, na altura ainda no Porto (não era do Sporting mas era mau e tinha estilo). Tudo se transformou num caleidoscópio negro de terrores. No dia em que eu marcara um golo a defender as cores da escola da minha terra, senti que talvez tivesse sido melhor não o fazer.

O professor chega. Entra sorridente e diz «está tudo resolvido, eles estavam chateados mas isso passa-lhes». Respondemos que o corredor está cheio e que estão a pedir as nossas cabeças, a minha e a do João. «O quê, aqui fora?! Isto é tudo miúdas, pá». Abriu a porta e era verdade: miúdas. Mesmo vendo, não dava para acreditar. Montes de miúdas. Saímos da arrecadação, em fila. Eu e o João fomos puxados, agarrados, quase engolidos. Fomos levados para cantos. Pediram-me beijos e o número de telefone. Isto, várias raparigas e em grupos, tudo compacto, tudo ao monte. E não conseguia sair dali. A perplexidade, a surpresa, a satisfação do ego, tudo se misturou com algum medo e com a pressa de ir embora. Por fim, consegui soltar-me e passar. O João também acabou por chegar cá fora, trazido por um colega nosso, mais robusto.

Tenho a certeza que foi nesse dia que a nossa vida mudou. Queríamos ser futebolistas. Isso era certo, desde sempre - ele no Sporting, eu no Benfica. Mas aquele sabor da pop foi mais forte. Um ano depois, o João tinha a sua banda thrash-metal cujo nome era o título de uma canção dos Sepultura. Pouco tempo depois, eu comprava uma guitarra e fundava, com outros três, os Kindergarten, que puxava mais ao grunge. Ontem, anteontem e no dia anterior estivemos os dois fechados num estúdio, ele na bateria, eu na guitarra e na voz. Acredito que isso se deva a este jogo de futebol.

sexta-feira, 9 de novembro de 2012

Religião, desemprego e estratégias alternativas

Eu não queria ofender ninguém, muito menos mexer com as sensibilidades religiosas de cada um - este é um sítio de respeito e que, assim, tem de dar-se ao respeito. É por isso que aqui deixo o meu pedido de desculpas a quem, de entre Cristãos Ortodoxos, se apoquentou com a acção preventiva de acondicionar seguramente o cachecol do Spartak numa caixa de cartão de formato peculiar. Reconheço que a falta da Cruz Bizantina foi uma falha e lamento por, num descuido, ter corrido o risco de melindrar alguém.

Aos apostólicos romanos que se insurgiram, gostaria de descansá-los: não, não enterrei a caixa. Está aqui ao meu lado e posso reutilizá-la, sem qualquer problema, caso tenha de devolver a guitarra. Não está sequer suja ou danificada. Acrescento, para qualquer crente, que tudo não passou de um exercício espontâneo - supersticioso, sim, mas sem malandragem nem voodoo, sem maldição nem orixás.

O mais curioso é que tudo isto aconteceu graças ao meu despedimento. E é ainda mais curioso que algo tão nefasto e desmoralizador acabe por vir a produzir consequências tão positivas. Por exemplo, o facto de ter tempo livre permitiu-me deambular por Lisboa em busca de coisas abstractas, que é como quem diz, andar à deriva sem qualquer objectivo. Por acidente ou curiosidade, ou até sorte, entrei numa loja de instrumentos. Isto sucedeu precisamente uma semana antes do jogo de quarta-feira. Foi nessa loja que encontrei à venda uma guitarra que eu desejava há mais de um ano. Porém, em ocasiões anteriores, nunca tive a disponibilidade financeira para investir na melhoria do meu património. Desta vez, tudo foi diferente, já que fui pago para deixar de trabalhar. E assim, com o dinheiro que me dão para estar sossegado, comprei a guitarra. Vejam nisto um investimento em ferramentas de trabalho, porque é disso que se trata, e não um capricho consumista.

Não tinha como transportar a guitarra até casa e recusei-me a comprar-lhe um Rockbag, até porque tenho um, ou uma hard-case, que seria despesa exagerada. A simpatia do vendedor da loja fez com que me fosse dispensada a tal caixa mágica que a fotografia do post anterior mostra para que eu lá pudesse guardar o instrumento praticamente virgem e, assim, levá-lo para casa em segurança.

Há toda uma conjugação de factores que fará os mais cépticos ter arrepios na espinha, bem sei. Mas ainda não é tudo: a guitarra chama-se Hell Cat e não fui eu que lhe dei o nome, foi o próprio Tim Armstrong.

Ponham-se no meu lugar: olhando, por exemplo, para um meio-campo que parecia designado pela própria Isabel Jonet - chegámos ao ponto de de lá meter portuguesinhos! -, não teriam vocês mesmos tirado proveito desta conjugação cósmica para dar uma mãozinha ao Benfica? Acresce que o ritual foi absolutamente experimental, nunca tinha sido antes testado nem em animais. Pareceu-me legítimo aproveitar os artefactos e simplesmente conjugá-los da maneira correcta. Como, aliás, fez Jorge Jesus com os homens que escolheu para o jogo e que, à partida, também não lhe garantiam grande coisa.

quarta-feira, 7 de novembro de 2012

Arrumações

Tenho um cachecol do Spartak de Moscovo. Não é aquisição recente. Trata-se de uma compra que fiz numa época distante. O Benfica tinha no meio-campo um velhinho espanhol chamado Chano, por exemplo, e eu começava a duvidar do meu clubismo - o caminho da fé não é feito de certezas, é feito de paixão. Por outro lado, havia um clube, o Sporting, que estava na Liga dos Campeões e os seus adeptos meus amigos e conhecidos teimavam em demonstrar-me, explicar-me, educar-me e chatear-me o juízo com exemplos, factos e histórias do seu clube, poderoso, forte e muito nobre. Depois aconteceu Champions e o Spartak deu-lhes três a zero. Em Alvalade. Um dos golos foi do Dimas na própria baliza (respect) e os outros dois do maestro Titov.

Dias mais tarde, à entrada do refeitório da minha faculdade, havia uma espécie de feira - umas bancas com aqueles artesanatos e jóias hippies, raparigas com tererés, djembés de enfeitar, cachimbos de água, missangas e um cachecol do Spartak. Optei pelo cachecol - até hoje não sei explicar porquê, mas também não me arrependo: é encarnado e branco, o que compõe muito bem a colecção, por entre os seis ou sete do Benfica, mais o gorro, os boxers e os dois jerseys (um é verdadeiro - n.º 10 Aimar, outro é da candonga e não diz porra nenhuma, mas é óptimo para as futeboladas e dá-me sempre muita sorte).

Hoje, porém, não é dia de deixar uma cachecol destes à mostra. Assim, antes de ir para o Estádio (com um bilhete que o meu amigo Manuel, furioso Benfiquista, gentilmente me ofereceu), decidi guardar o objecto numa caixinha adequada.

terça-feira, 30 de outubro de 2012

O mundo precisa de Marias

Em conversas deambulantes com a Lady Verde surge, por vezes, o tema "nomes para filhos". Não que estejamos a equacionar um investimento no alargamento familiar. O bom senso tem vindo a prevenir tal decisão e o facto de sermos, no presente, dois desempregados sob o mesmo tecto vem demonstrar por que razão lhe chamamos "bom senso" e não outra coisa qualquer. Mas pensamos no assunto, até porque tenho o sonho de alargar o universo Benfiquista, injectando-lhe sangue do meu. Nesta parte, discordamos, eu e a Lady. Porém, não creio que, chegada a altura de cumprir o sonho, ainda exista Sporting suficiente para me dificultar a missão.

Eu gosto do nome Maria Olívia. Olívia porque acho bonito, Maria porque o mundo carece claramente de Marias. É um nome que a modernidade foi votando ao desuso. Há quem considere, ainda, que os nomes compostos são uma invenção suburbana ou provinciana, resultado dos impulsos criativos de uma geração recém-libertada das tradições e costumes conservadores do nosso Estado Novo - e o meu próprio nome, que, por pudor, não revelarei, pode até atestar o acerto dessa opinião. Contudo, a minha avó chama-se Maria da Conceição e a sua filha, que é minha mãe, chama-se Maria João. São ambas nascidas num tempo em que o Presidente do Conselho esbanjava vigor e saúde. Portanto, não generalizemos.

Maria foi sendo substituído, sobretudo na minha geração, por Ana. Qualquer coisa se chamava Ana em 1985. E, se as Marias José, de Jesus, Francisca, Antonieta ou, lá está, Olívia foram desaparecendo dos recreios de escola primária, o seu lugar foi sendo tomado pelas Anas Catarina, Sofia, Cristina, Patrícia ou Isabel. Existe ainda uma franja de Carlas - de Alexandra a Susana - que prosperou nesse período em que o subúrbio e a província expandiam, cheios de convicção e crentes no glamour, o nome composto, eliminando a singeleza das Marias e reinventando a designação feminina recorrendo a novidades oriundas de outras paragens, respirando sofisticação globalizada, com inspiração que podia vir tanto do Brasil como da Checoslováquia.

No mundo do futebol - já o disse aqui - reconheço tanto o mérito como a utilidade ao recurso a nomes novos. Quem chama João - só assim "João" - a um filho não pode esperar que este venha a impor-se no belo desporto da mesma forma que um Fábio, um Cristiano Ronaldo (composto ao alcance de poucos) ou ainda de um Yannick, sendo que este desfruta da vantagem de ter raízes já de si exóticas, o que faz dele um nascido para vencer.

Já no mundo dos filhos, a situação é diferente. E das filhas é ainda mais delicado. O meu rapaz há-de chamar-se Xavier, sim. E poderia chamar-se com nome composto, se Saviola tivesse continuado a vestir de Encarnado: Xavier Pedro já se encontrava sob reserva para uma criança que teria, por certo, um destino maravilhoso pela frente. Quanto à Maria Olívia, não há Soraia Cristina que me demova.

sábado, 27 de outubro de 2012

O presidente está eleito, viva o presidente!

Não, não estou contente. Não votei em Luís Filipe Vieira e não creio que Vieira venha a ser bem sucedido nos próximos quatro anos. Votei Rangel, mais por ser contra Vieira do que outra coisa, mas nunca tive grandes ilusões quanto ao vencedor. O resultado aí está e é esmagador: os Benfiquistas querem Vieira na presidência por mais quatro anos. Que se respeitem os Benfiquistas, os que elegeram Vieira, os que votaram contra ele, os que votaram em branco, os que não votaram porque não quiseram, os que não votaram porque deixaram de pagar quotas e os outros todos que nem sequer são sócios: o Benfica ainda é de todos nós. O líder é este, respeite-se o líder. Muito sucesso e fortuna, é o que lhe desejo, porque o meu Clube está nas suas mãos.

O exercício de voto no Benfica foi algo que me comoveu. Nunca antes tinha votado, sou um sócio recente. De repente, no meio daquele gigantismo do Clube que é o Benfica, centenas de pessoas, em fila, aguardavam a sua vez, o seu momento de cuidar do seu amado. Velhotes que podiam ser o meu avô, miúdos novos numa pausa entre aulas, homens e mulheres, uns em grupo mas muitos mais sozinhos, a exercer o seu dever de ter uma palavra a dizer sobre o destino do Clube. Poeticamente, estávamos na nossa colectividade do bairro ou lá da terra, a zelar pelo nosso futuro. Só que em ponto muito grande. Mas ali, naquela fila, estávamos todos juntos, os que iam votar A, os que iam votar B e os que iam votar em branco. E senti qualquer coisa parecida com fraternidade: esse tal espírito de colectividade. Que é tão bonito e que tanta falta tem feito ao nosso Benfica. É que, por mais que se esfreguem na cara as vieirices de uns ou os rangelismos de outros, temos aqui uma paixão em comum - ou eu estou profundamente enganado e afinal existe, entre Benfiquistas, coisas mais importantes do que o próprio Benfica?

Boa sorte ao presidente - em quem não me revejo, mas que é o presidente do meu clube - e viva o Benfica!

sexta-feira, 26 de outubro de 2012

Pedido de auxílio de um cidadão Benfiquista

«Boa tarde,

Como se obtém o PIN para votar? Ja escrevi email, mas ninguem do SLB me respondeu. Como estou no estrangeiro nao consigo ligar para o 707 200 100.
Sugestoes?
Obrigado»

Assina HAzinheira. Como não sei a resposta, peço a quem saiba que a deixe aqui, na caixa de comentários. Obrigado.

Vamos a votos

Essa ideia dos notáveis está muito sobreavaliada no Benfica, porque notáveis somos todos nós. Aliás, basta ser benfiquista para ser notável.

Esta frase é de Rui Rangel e extraía-a desavergonhadamente da entrevista que esse Benfiquista, tão notável quanto eu e pelas mesmíssimas razões, deu ao notável Ontem Vit-te no Estádio da Luz.

Sou um tipo fácil de levar, é certo. Basta ser um Benfiquista para ser notável, é tão simples e tão precisamente aquilo que eu precisava de ouvir. Eu sei que Rangel, quando o disse, sabia que me apanharia fraco, em baixo, de ego amassado. Talvez seja um golpe de astúcia. A verdade é que funciona. Entre a simplicidade bonita desta frase e a promessa - em quantas vamos, Luís? Hum? - de três campeonatos e uma final europeia nos próximos quatro anos, atrevo-me a preferir a primeira. E tu, leitor, podes estar a pensar assim «ah, mas tu vais votar num homem por causa de uma frase?» e eu respondo-te «aqui quem faz as perguntas sou eu. Lê bem a entrada do blogue: Benfiquismo em formato pedagógico».

quinta-feira, 25 de outubro de 2012

Calçar umas chuteiras Nike

Acordei rouco, quase sem voz, e com uma dor de garganta preocupante. Ontem fui jogar à bola, estava de chuva, suponho que estes sejam os danos colaterais. Lamento o facto de ter um concerto logo à noite e preocupa-me a possibilidade de não conseguir chegar ao fim de um alinhamento de dez músicas que defenderei absolutamente sozinho, com uma guitarra no colo e uma voz muito débil, numa recriação metafórica, alegórica, enfim artística, da figura que o Matic faz no meio-campo do Benfica. Mas ganhámos 4 a 2 ao pessoal da Linha, portanto, valeu a pena.

A vida não me tem corrido bem e talvez essa seja a origem da minha desinspiração crescente. De cada vez que penso em vir aqui e escrever um texto, abre-se um abismo entre mim e a criatividade, ergue-se uma barreira de pedra mental entre a minha ideia e a ponta mais distante dos meus dedos. Ontem, ainda durante o jogo, tentei cruzar uma bola, de pé direito, num lance em que seguia embalado, perpendicular à linha de fundo, com esta cada vez mais próxima. O gesto de rotação que me permitiu cruzar a bola provocou-me uma lesão, cujos danos ainda estão por avaliar, na face posterior da coxa esquerda. A semana passada, num lance semelhante, não consegui travar, tal o embalo, e, sem pitons, numa relva sintética bastante molhada, acabei espalmado contra o gradeamento do campo, com prejuízo grave para o meu braço esquerdo, cujas marcas ainda hoje ostenta: está negro, a passar de verde para amarelo. Não sei o que explodiu lá dentro, mas ficou feio.

Depois de quase ter perdido a vida contras as redes do campo, ontem decidi que era melhor jogar de chuteiras. Recuperei as minhas Nike Tiempo, umas vintage com 17 anos dos tempos em que eu ainda representava o grande Dépór. Estão como novas. Sempre odiei a Nike e não consigo, a esta distância, compreender os bizarros motivos que me terão levado a comprar aquele horror de botas. Uma bota de futebol, se não é Adidas, tem de ser Puma. Tenho alguma consideração por uma única excepção: a Lotto, marca que calçou com a maior elegância grandes talentos do futebol italiano dos anos 90. E a mim, que tive umas Roberto Donadoni, lindíssimas e que, não sendo italiano, também não era talentoso. O que faltava em génio, sobrava-me em coerência.

A minha mãe engraxou-me as botas num gesto de reminiscência maternal dos tempos em que ainda acreditava que eu podia vir a ser o próximo Vítor Paneira. Eu era muito baldas e furtava-me recorrentemente à função de engraxador de botas. Isto, num tempo em que uma bota de futebol era invariavelmente preta. Eu sei que agora o azul esmaltado cruzado com cor-de-rosa choque (não é brincadeira, elas existem) faz furor. Mas na altura as botas serviam para chutar a bola. E a bola, na altura, era uma coisa chamada Mikasa que fazia “peiiiim” quando nos batia na cabeça. Enquanto me tratava das botas, a minha mãe mandou-me uma mensagem que dizia assim «Se alguma vez me passava pela cabeça voltar a engraxar-te as chuteiras, filho» e confesso que me comoveu, por um lado, e, mais importante, me fez sentir que ainda posso vir a ser detectado pela equipa de prospecção do Benfica – quando tens a tua mãe a engraxar-te as botas de futebol, tens todo um futuro à tua frente.

A minha mãe entregou-me as botas ontem, quando fui ter com ela ao Hospital de Santa Maria, para visitar o meu avô materno, que lá está internado. Sofreu um AVC na segunda-feira. Aparentemente, não deixou mazelas graves. Mas preocupa-me, como é evidente. O meu avô materno sempre foi o símbolo do Sporting na minha família, ao contrário do falecido Domingos, o meu paterno, aquele que me ensinou a ouvir os relatos da Antena 1 («a Renascença não, que é só beatos»). A falta do meu avô Benfiquista é um vazio demasiado grande. Gostava que não me levassem também o Sportinguista, com quem aprendi a lidar com a rivalidade, o oposto, a vitória leal e a derrota dolorosa, a felicidade ou a infelicidade que à mesa do almoço de domingo muitas vezes não podiam ser partilhadas.

Na terça-feira, enquanto o meu avô estava dentro daquelas estranhas máquinas que fazem TAC’s para que alguém conseguisse finalmente diagnosticar alguma coisa com pés e cabeça, eu estava enfiado numa sala de reuniões a discutir com uma comissão de trabalhadores exigências, intransigências e alguns detalhes mais flexíveis daquilo que será, muito brevemente, o meu despedimento (juntamente com quase mais 50 pessoas). Seriam umas seis e um quarto da tarde e, pela primeira vez desde o início de todas estas coisas que me têm acontecido nos últimos tempos, senti uma espécie de revolta, provavelmente filha de uma detestável auto-comiseração que, por vezes, vem ao de cima. Foi qualquer coisa parecida com raiva, mas uma raiva muito magoada, que vinha num pensamento mais ou menos assim «porquê eu? Eu só queria estar a ver o Benfica». O Benfica estava a perder e a jogar muito mal. Mas o que mais me doeu foi não poder vê-lo.

sábado, 20 de outubro de 2012

Luto laboral

Ontem era dia de greve e manifestação, o dress code era o preto, pelo luto. Concentrámo-nos frente à porta da redacção, manifestando desgosto pelo futuro desemprego de cada um dos já designados, como eu, mas tentando demonstrar de igual modo uma tremenda tristeza, uma mágoa impotente, por ver afundar algo que nos é ainda tão querido e tão pessoal: aquele jornal. Levei calças pretas, uma parka que eu acho que é preta e que a Lady Verde afirma ser azul muito escuro, botas castanho-escuro, de pele, que comprei por uma pechincha no mercado de Porto Bello (25 libras, acho eu), uma camisa de quadradinhos minúsculos, pretos e brancos, que, ao longe, dá ideia de ser cinzento também ele moderadamente escuro e óculos escuros, que ora punha, ora tirava, dependo das nuvens carregadas, que às vezes passavam sobre nós, outras nem por isso. Estava, portanto, de luto. A t-shirt que levava por dentro era definitivamente preta, embora tenha permanecido omissa até ao fim dos trabalhos de manifestar, já que não se concretizou a ideia de alguns que consistia em ir tirando roupa até que alguém nos desse razão. As meias eram cinzentas. Não muito escuras, porém suficientemente enlutadas. As cuecas eram, claro, as do Benfica, que ganhara no dia anterior, e por quatro a zero, para a Taça de Portugal, isto apesar de eu ter aparado a barba seis dias antes, fazendo estremecer as fundações de um compromisso que me obriga a levar um respeitabilíssimo bigode ao Jamor no próximo mês de Maio. O vermelho nunca poderá ser luto e eu nunca poderei estar perfeitamente enlutado no dia que se segue a uma vitória do Benfica.

sexta-feira, 12 de outubro de 2012

O colectivo e a cidadania

Estou de férias. Penso que é a quarta vez que estou de férias este ano. Talvez seja a quinta. Tinha muitas férias e folgas acumuladas, precisava de as gastar antes que acontecesse o que se previa e que acabou por acontecer, quarta-feira passada. Estas são as últimas férias que gozo como empregado desta empresa. Sim, também eu fui atropelado por um despedimento colectivo. Dois telefonemas, muitas justificações e alguns pedidos de desculpa, «logo que possas, passa por cá para começarmos a negociação» e eu «claro, vou amanhã para Lisboa».

Cheguei ontem a Lisboa, ainda não comecei a negociação. Para já, quero desfrutar do estatuto de "pessoa de férias" e não entrar imediatamente no modo "futuro desempregado". Estas mudanças requerem habituação. São 14 anos e meio da minha história, existe aqui uma pele que é preciso despir e essa operação requer delicadezas.

No primeiro turbilhão de ideias e receios, surgem planos para o futuro e tomadas de pulso à vida que roçam o ridículo. O que é que eu tenho, o que é que posso fazer, para onde me posso virar, o que é que eu hei-de tentar? Tudo junto, tudo em simultâneo, tudo encavalitado, uns pensamentos em cima dos outros, os medos em cima das esperanças, as expectativas montadas nos sonhos. E uma estranha sensação de liberdade, com tanto de assustadora quanto de ambiciosa. A urgência absurda de escrever textos e compor músicas embrulha-se nos planos burocráticos das papeladas para tratar na Segurança Social e no centro de emprego da minha área de residência e nas finanças e nos recursos humanos do sítio onde trabalho e na comissão da carteira profissional - e logo eu, que sofro de papeladofobia: uma ida às finanças implica vários dias de mentalização que resultarão invariavelmente em adiamentos sucessivos, num bizarro processo de procrastinação sem motivo racional para existir; o preenchimento de um impresso é, para mim, um pitbull sem açaime nem trela, estagnado diante da porta do meu prédio, à espera que eu avance. Sou uma pessoa com problemas. E tenho de actualizar o meu currículo. O drama não pára de crescer.

Por entre os destroços de um cérebro que dantes funcionava, encontram-se ainda alguns pedaços de inteligência e de raciocínio. São pequenos recantos de calma e de sensatez, clareiras de sossego onde as emoções podem fluir sem causar danos porque existem tranquilas. Foi num desses inesperados esconderijos que tive o meu receio mais clarividente: Diego, e as quotas do Benfica, pá? Pelas minhas contas, não será difícil garantir o pagamento de, digamos, mais uns 18 a 20 meses. Disponho de algum tempo para resolver a situação, mas não deixa de me inquietar.

Foi nessa altura que me lembrei de vários amigos meus, grandes Benfiquistas. Amigos que, na sua desilusão com o Benfica presente, reprovadores desgostosos do que se tem passado nos tempos recentes, decidiram abdicar do pagamento das quotas - «dar dinheiro ao Vieira?! A esse chulo?!» - e eu, honestamente e sem julgamentos, não os compreendo. Tudo o que eu quero é poder continuar a pagar as minhas quotas e, assim, ter o direito e a legitimidade para ter uma palavra a dizer acerca do meu Clube, para o poder defender com as armas que existem - no caso, o voto. Pode ser pouco, pode ser injusto. Mas é o que há e para poder mudar o que quer que seja, é a única ferramenta legal de que disponho. E vocês também.

Amigos, a mim assusta-me a possibilidade de um dia ser obrigado a abdicar da minha Cidadania Benfiquista para poder cumprir compromissos elementares; por isso, peço-vos que não desperdicem a vossa.

quarta-feira, 3 de outubro de 2012

Para além de ganhar e perder

«Era bom que o Barcelona deixasse de ser um objecto de adoração com o qual todos os adversários - menos um - ficam eufóricos por perder. É uma equipa de futebol, não o Dalai Lama
José Manuel Ribeiro, in O Jogo.

Não gosto do Barcelona. Foram várias as equipas desse clube que muito admirei - a de Romário, a de Ronaldo, a de Figo, a de Ronaldinho -, mas o clube nunca me fascinou. Impressiona-me a sua dimensão, desgosta-me a sua postura: a de eterno número 2.

Pressinto no Barcelona uma espécie de essência ressentida, um género de novo-riquismo com muito maus modos, a ambição de um desesperado, a deselegância de alguém a quem nunca assentarão bem plumas nem pérolas. Pode ser uma distorção minha, um erro meu de interpretação da massa e do espírito culé, que, decerto, terá muitas e portentosas virtudes. Não estou a defender uma teoria científica, estou apenas a partilhar a minha impressão.

O Barcelona ganhou a sua primeira Taça dos Campeões em 1992. Isto é, o Barcelona ganhou pela primeira vez aquilo que o Benfica ganhou pela primeira vez 31 anos antes. Contra o Barcelona. Depois de o Barcelona ter eliminado o poderoso Madrid - que seria, na época, um rival caso o Barcelona se pusesse em bicos de pés - e se preparava para lhe conquistar a coroa europeia. Esse momento definiu a nobreza da linhagem de um clube e a deformação, pelo ressabiamento, do espírito de outro. Ou seja, o Benfica tem a sua culpa nisto de o Barcelona ser um inequívoco mas perpétuo pretendente ao trono.

E é por tudo isto que me custa compreender que o Barcelona tem uma equipa muito melhor do que a nossa e que joga um futebol muito mais poderoso e difícil de contrariar. Entendam-me: eu percebo que é assim. Mas recuso-me a aceitar o facto com um encolher de ombros embevecido pela deslumbrante qualidade do meu adversário. Eu quero mais é que o Messi se foda e as melhoras do Puyol, temos pena - mas olha, acontece. Perder custa-me, por mais Barcelona que este adversário seja. E podíamos ter feito melhor. Tentando, lutando, honrando a nossa história e as nossas origens.

Aceitar racionalmente uma derrota é um gesto sensato, uma questão de justiça elementar; sentir orgulho nessa derrota é, num Benfiquista, uma falha de personalidade.

terça-feira, 2 de outubro de 2012

Coincidência, dizem eles

Sé é dia de Benfica, visto encarnado ou o que tiver disponível que mais se aproxime do nosso tom. Se aquela t-shirt vermelho-berrante estiver lavada e disponível, nem hesito: é mesmo essa que vai. Isto, quer seja em dia de acabar no Estádio da Luz ou de, por exemplo, terminar em cima de um palco, nesta cidade ou em qualquer outra. Não se trata sequer de uma superstição. É, muito antes disso, um sinal de solenidade e de respeito pelo momento: o Benfica vai jogar e eu estou com o Benfica. É isso que representa e significa. Não o faço para me dar sorte ou para evitar o azar. Visto-me assim para que fique claro que, esteja onde estiver, estou connosco [não é gralha: estou connosco]. Da mesma maneira que trago a fotografia da Lady Verde na carteira – sim, pode ser kitsch, sim, pode não servir para nada. Mas gosto de a ter comigo, estejamos onde estivermos, qualquer um de nós. As paixões são assim.

No metro, na rua, mesmo no trabalho, encontro muita gente com tons fortes de vermelho vestidos. Podemos fingir que é coincidência; podemos especular que se deve à minha atenção hoje especialmente focada em tudo o que me sugira o Benfica. Eu aceito ambas, sem reclamação. Embora contraponha, sem dificuldade, que somos um povo de cinzentos e castanhos, preto e branco ou azul escuro. As cores fortes e garridas e sobretudo as Camisolas Berrantes não saem da gaveta sem um propósito concreto. Somos gente discreta, não gostamos de dar nas vistas nem de ser olhados por desconhecidos. Focamo-nos no chão e nem damos pelos transeuntes, convenientemente vestidos de cores neutras ou outonais. Porquê, então, tanta gente de encarnado vivo hoje nas escadas rolantes do Marquês? E no metro de Santa Apolónia? E à espera do próximo em cada estação? E na rua?

O que se passa é isto: saímos à rua cheios de fé, juntos pelo Benfica e orgulhosamente Benfiquistas. Cada um com a sua fantasia – todas juntas, perfazem o sonho comum: a Nossa vitória. A minha fantasia, já se sabe, é o poker do Lima.

É só carregar no botão

O meu pai deu-me esta caixa e disse-me «já sei que sofres quando estás a ver a bola. Toma, isto vai poupar-te sofrimento». Na altura, não percebi em que medida é que uma caixa de aspecto exótico poderia minimizar o sofrimento de um adepto Benfiquista, aliviar-lhe o stress, contribuir para o seu descanso suavizando os efeitos de um complexo de sensações palpitantes e pensamentos tragicamente nervosos. Depois percebi.

Na verdade, a misteriosa caixa é uma moderna cigarreira, com um botãozinho que faz abrir a sua tampa por meio de um sofisticado dispositivo. Trata-se de um objecto que classificaria de bondiano, tanto ao nível da classe e elegância como da funcionalidade prática: carregas no botão et voilá, os teus cigarros.

Desde que comecei a fumar cigarros de enrolar que a minha vida de Benfiquista se complicou. Seja no Estádio ou na taberna, sempre que estou a ver a bola sinto uma necessidade quase compulsiva de fumar. Dantes, tal não representava problema ou incómodo, fumar era fácil: abria o maço de cigarros e tirava um. Hoje em dia, perco tempo, atenção e muitos cigarros, porque me saem nervosamente tortos, às vezes rasgados, cheios de barrigas e mal selados, porque, enquanto vejo o Benfica, as minhas capacidades cognitivas e motoras tornam-se concentradamente eficientes: articulo um discurso bastante direccionado e reduzido, assente, sobretudo, em vernáculo do mais reles; as mãos servem-me ora para fazer o sinal de "mais uma, shôr Manel", ora para bater na própria perna com frustração, ora para as erguer no ar em sinal de que foi golo e eu estou muito contente. O cérebro, esse, reconfigura-se numa parafernália de possibilidades tácticas com setinhas de várias cores e pontos luminosos que indicam situações de alerta: um jogador desmarcado, um adversário em off-side, um guarda-redes mal posicionado, uma mão na bola, um golo à espera de acontecer. Todas as restantes funções a que tenho direito e que, em circunstâncias não futebolísticas, executo com razoável destreza, são automatizadas e deixam de ser da minha responsabilidade. Entre elas, inclui-se a de enrolar cigarros. Esta cigarreira tem tudo para mudar a minha vida. E hoje é um bom dia para mudar a minha vida.

Enquanto preparava a remessa para logo, reparei num detalhe interessante: as mortalhas são feitas em Barcelona. Ampliando a foto, podem confirmar o que digo. Isto tem de ter um significado. O que é que vamos fazer com os de Barcelona? Eu vou, no mínimo, fumá-los. Há aqui uma garantia de de supremacia.

Não vou ver o jogo no Estádio. Um conjunto de atrasos, hesitações e questões ditou que, até ontem, eu não tivesse comprado bilhete. Sei que ainda restam alguns, muito poucos. Pelo menos, restavam até há pouco. Mas não vou comprar. Não quero ir. Há aqui um lado místico. Em 2010, quando, a meio da época, me apercebi de que não tinha ido ao Estádio uma única vez, pensei «se isto está a correr tão bem, o melhor é não complicar: em equipa que ganha não se mexe». Fomos campeões. Não vi ao vivo a melhor equipa do Benfica dos últimos largos anos, mas o sacrifício foi largamente compensado. Não sei se a história se repete, mas a minha táctica para hoje é a mesma: vejo a bola na Típica, a fumar cigarros de enrolar feitos com premeditação, como bom homem prevenido. Prefiro deixar o momento eventualmente histórico e provavelmente belo para todos os outros que, sortudos, lá vão estar, muitos deles vindos de longe para ver o grande jogo diante da melhor equipa da história. A verdade é que hoje não faço assim tanta falta ao Benfica - hoje são muitos os Benfiquistas no Estádio. Sábado, diante do Beira-Mar, quando formos 25 ou 30 mil, farei mais falta. E, então, lá estarei.

Espero perder um momento Glorioso e verdadeiramente inesquecível. É tudo o que peço. Hoje é um bom dia para ter um dia diferente. Para começar, vou estrear a minha cigarreira para poder seguir com mais atenção, melhores cigarros e o fervor de um devoto em exclusivo o que se passa no campo.

sábado, 29 de setembro de 2012

Mundo de fantasia

Tenho tido duas fantasias recorrentes. Uma delas é que o Lima vai fazer um poker em breve. Não tenho explicação para isto, mas é um feeling. Ou então é a minha ingenuidade a justificar-me inconscientemente a aquisição do Lima por 5 milhões de euros ao Braga. A sério que imagino isto e dou por mim perdido entre o sonho e o pensamento quando vou no metro e vejo o Lima a ombrear com o Piqué, nas alturas, e a fazer o primeiro logo aos 12 minutos. Depois, meia-hora mais tarde, chuta de força desde os 30 metros e mete-a ao meio da baliza, com claras culpas para o Valdés. À beirinha do intervalo, num ressalto após um canto, encosta a dois metros da baliza com os defesas por terra e o Valdés fora do lance. Depois do hat-trick, pelos 75 minutos, quando o Jorge Jeus chama o Kardec para a substituição de consagração, Lima faz um sprint, rouba a bola a Busquets, isola-se e, ao primeiro passo de Valdés na sua direcção, dispara forte e rasteiro para o segundo poste, fazendo a bola aquele efeito bonito zzzzzzzzztt a toda a volta interior da rede.

A outra fantasia é menos nobre e não deve ser encarada como um desejo. Nem sempre desejamos as fantasias que temos e quem já passou por uma câmara de bondage sabe do que falo. Esta fantasia não terá uma componente tão dolorosa, é certo, mas pode igualmente causar embaraço se, por exemplo, a nossa mulher a descobrir - sobretudo se a nossa mulher for a minha, que é precisamente do Sporting. Nesta minha fantasia, um Sporting muito forte e corajoso luta com o Moreirense, o Vitória de Setúbal e o Rio Ave para fugir à despromoção. São cinco ou seis jornadas de grande emoção em que raramente alguma destas equipas ganha um ponto que seja, mantendo a classificação definitiva em enorme suspense. Na última jornada, diante de um Beira-Mar tranquilo e com o 12.º lugar já garantido, o Sporting consegue fazer o golo do empate aos 97 minutos, num lance em que Rinaudo parece estar fora de jogo no momento do desvio com a mão de Van Wolfsv...isso, que assim o assiste. Facundo faz golo e segura o Sporting na divisão maior do futebol português por, pelo menos, uma época mais e a euforia não se faz esperar: os sportinguistas invadem o Marquês de Pombal e enchem Lisboa de festa, obrigando os Benfiquistas a realizar os festejos de campeão nas imediações do Estádio da Luz.

sexta-feira, 28 de setembro de 2012

Momento pedagógico

Temos que conversar. Houve uma Assembleia Geral de gente acordada Benfiquista, na qual não pude participar por motivos profissionais - um motivo profissional é um motivo muito mais sério do que um motivo amador - e, para além disso, há o drama Xistra, mais uma dessas banalidades usuais que nos aborrecem e acabam por derrotar, ano após ano. E muitos remates ao poste, mesmo com a baliza aberta.

Porém, daqui a pouco o Benfica entra em campo e nada disso me importa. Porque esse é o momento bonito do futebol: os 90 minutos do Benfica. E eu, derivado dessa situação, irei directamente ao assunto. Como não escrevo há algum tempo, optei por ser fiel a um dos princípios do blogue e assumir o seu carácter pedagógico.

Escrevia Jorge Maia, ontem, n' O Jogo, mais uma crónica da especialidade deste jornal: o Zénit de S. Petersburgo. Acerca do assunto Witsel + Hulk = ups, afirma Jorge Maia que «ainda é cedo para se falar em gangrena, até porque as palavras de Vladimir Putin costumam ter um potente efeito antibiótico em qualquer discussão mantida para lá dos Urais». Por esta altura, o leitor mais perspicaz já há-de ter compreendido que o tema de hoje é geografia.

Como pode ver-se na imagem acima, Jorge Maia cometeu um lapso. É que nem toda a Rússia fica para lá dos Urais - Jorge, os Urais separam geologicamente a Europa da Ásia e a Rússia paraticipa sempre nos Campeonatos da Europa, não nos asiáticos (eu acho que isto é uma boa mnemónica) - e, mais concretamente, as duas cidades em questão - a bonita São Petersburgo que tanto fascinou Witsel e Hulk e a imperial Moscovo que acolhe docilmente a existência oficial de Putin - ficam do lado europeu da Rússia continental. Portanto, e socorrendo-me da expressão de Jorge Maia, "para CÁ dos Urais". Espero ter-vos sido útil e viva o Benfica! O Lima hoje faz quatro.

sexta-feira, 21 de setembro de 2012

Meta: futebol

Os dias menos bons do Benfiquismo vigente e as reacções extremadas de algumas facções, incluindo vieiristas (a expressão “detractores” a surgir com tom oficial no jornal do Clube é mais uma mancha de vergonha no historial da propaganda do aparelho do Luís), levaram-me a Encarnar o próprio Benfiquista que há em mim de uma maneira plena de convicções e de ideias, de impressões e de opiniões. Disparate, claro. Quem me conhece sabe perfeitamente que eu não acho que o futebol seja isso. O futebol está muito antes de tudo isso - é aquele jogo incrível que se joga durante 90 minutos dentro de um campo rectangular. Mas um dia não são dias e às vezes uma pessoa também se sente compelida a manifestar uma opinião, uma sensação, um pensamento, um desabafo. Ser Benfiquista comporta alguns riscos e eu, quando fui fecundado, aceitei-os sem dúvidas nem hesitações: vamos a isto. Claro que tem consequências. Um gajo chateia-se com amigos e por aí fora. Mas a Causa será sempre maior do que essas irrelevâncias pueris.

Hoje, porém, estou muito melhor da minha sensibilidade. Glasgow deixa alguma mágoa, mas o que importa agora é trazer três pontos de Coimbra e dar uma lição – bonito, hein? – a esses rapazes que perderam 3 a 1 com uma equipa cujo nome não consigo pronunciar. Plzen? Isto, para mim, é um amarfanhado de consoantes terminado em “en”, o que não tem pronúncia possível.

Mas não era disto que eu queria falar. Hoje deparei-me com uma notícia que quase me comoveu. Dentro do universo do futebol, e bem mais próximo do meu coração de adepto do que as questões políticas (necessárias, legítimas e lógicas, evidentemente) que circundam e acossam o fenómeno do Belo Desporto, estão dimensões que poderíamos chamar de meta-futebolísticas. O caso do CM/FM é uma dessas dimensões. Quem nunca perdeu uma namorada por causa deste fenómeno, não sabe, com certeza, o que é ser-se Campeão Europeu em 2018 com um Standard Liége às seis e meia da manhã ou ganhar o 17.º Scudetto consecutivo com a AS Roma à hora a que a companheira se levanta para tomar banho e pergunta «mas tu ainda estás aí?!» ao que um homem responde «estava só a fazer mais este jogo».

Depois de tomar conhecimento desta notícia e da homenagem terrivelmente tocante ao mito de Tó Madeira, vim a saber que existe o livro Football Manager Stole My Life (um aperitivo). Os autores do livro conheceram mesmo Tonton Moukoko e eu invejo-os por isso. Porque, sem Moukoko, o meu Standard nunca conseguiria ser campeão da Europa, a minha Roma nunca poderia ganhar os 22 campeonatos consecutivos e aquelas cinco Ligas dos Campeões, após os quais eu decidi «nunca mais jogo a isto, já perdi quatro quilos». O Moukoko está para a minha devoção meta-futebolística como Pablo Aimar está para a minha definição de talento e classe na actualidade: é o Master. Não há quem lhe seja superior nem, tão pouco, quem lhe seja rival.

Pensar nestas coisas fez-me bem. O Benfica não ficou melhor, mas eu voltei ao Futebol.

quinta-feira, 20 de setembro de 2012

Mau Benfiquista, me confesso

Não que eu queria meter-me nesse assunto que me transcende, o do “bom Benfiquismo”, pois, pelo que tenho lido um pouco por toda a parte, depreendo que sou um dos piores Benfiquistas da actualidade, senão mesmo o pior. Por um lado, acho que o Luís já presidiu o que tinha a presidir e que o lugar exala um odor bafiento – buuuuuuuuu, que anti-Benfiquista que eu sou. E acrescento que a pré-época que findou talvez tenha sido – talvez – a mais mal planeada dos últimos oito ou dez anos – um ultraje estas coisas que eu penso e que eu digo, então se a equipa funciona e se vai em primeiro, que mal tem se faltam meia-dúzia de jogadores fundamentais? La nave va… Deixá-la andar, para a frente é que é caminho. Eis que, de repente, dou por mim e não estou empoleirado na janela a arrancar cabelos e a gritar «acudam, acudam, que aqui há tragédia!» depois de um empate a zero com o Celtic, em Glasgow, na Liga dos Campeões – ui ui ui, que eu sou mas é adepto do benfiquinha, não valho nada, por isso é que isto está assim!

Está visto que para adepto não sirvo. No entanto, aqui estou. E lá estarei, nos próximos sábados e domingos e terças e quartas-feiras. Dou o que posso e acredito no que acredito, criticando o que achar que tem de ser criticado. E há tanta coisa que merece crítica neste Benfica… Da direcção do clube à gestão do futebol, de certas opções do treinador à postura inenarrável de Gaitán (um dos jogadores que mais me embaraça nesta equipa), há todo um universo criticável no Benfica de hoje.

Por exemplo, no jogo de ontem. Tenho uma ou duas críticas a fazer. Primeiro, acho que o Jorge foi um bocadinho coninhas. Os gajos são fraquíssimos. São muito toscos, têm uma série de debilidades. Defendem com rigor, é certo, e são muito físicos na abordagem ao jogo, confere. Mas podíamos e devíamos ter arriscado mais. Digo isto tão enfaticamente quanto um treinador de bancada deve fazê-lo, até dei uma espécie de palmada na mesa enquanto o escrevia – e até é por isso que estou a demorar mais a escrever este texto, porque me farto de gesticular enquanto o escrevo. Chego mesmo a vociferar quando o entusiasmo é maior. O Jesus devia ter metido o pé na porta, porra!

Também não gostei do Gaitán. Não gosto do Gaitán. Pode ter o talento que lhe apetecer: odeio vê-lo com aquela camisola (e ainda mais com a outra toda encarnada), por mais talentoso que aquele jovem calão, maldisposto, contrariado, infeliz, mau companheiro, convencido e insolente possa ser. E nem vou explicar por quê. Não entendo, no seguimento desta ideia, como pode o Nolito, exemplo de esforço e de abnegação, aos quais junta uma produtividade notável, ser suplente. Também acho, no mínimo, questionável que se adapte um Enzo Pérez a interior quando se tem no banco um Bruno César. É a minha maneira de ver as coisas. E que, na ponta final da partida, se tire o Rodrigo em vez de se apostar na dupla de pontas-de-lança que tão bem tem funcionado. Pronto. Tenho aqui uma série de críticas.

Não sei se foi por tudo isto que o Benfica só empatou ou não. Mas pode ter sido. O empate soube-me a muito pouco. Temos, apesar dos rombos no plantel, equipa que chega e que sobra para estes senhores. Se podíamos ter ainda melhor equipa? Pois claro que podíamos. Sucede que não temos. E eu, se não se importam, vou apoiar a que temos porque é que com estes jogamos, são estes que me defendem as cores, não os fantasmas daqueles que se foram embora para subir na carreira (curioso que tenham perdido os dois). E espero que estes nossos meninos, os que ficaram, nos próximos jogos mostrem mais cojones, que aquilo de ontem foi uma amostra pobrezinha. E até lhes deixo aqui uma garantia: não hão-de ver-me assobiar um Enzo Pérez ou um Melgarejo só porque o Witsel foi vendido ou o defesa esquerdo não foi comprado.

É isto que penso. Já sei que há-de haver quem considere esta postura como “conformista com a mediania e a mediocridade”. A essas pessoas, aqui fica o meu pedido de desculpas por ainda não estar à janela e a arrancar cabelos enquanto grito «acudam, acudam, que aqui há tragédia!».

Conversa interclubística matinal*

O barbeiro cujo estabelecimento se situa por baixo da minha casa é a pessoa mais lagarta de toda a zona antiga de Lisboa. No pior dos sentidos que este título pode ter. É tão sportinguista que muda de passeio para não passar demasiadamente próximo de mim e, apesar de eu ser seu cliente há já alguns anos, nunca me dirige a palavra, a não ser em serviço. Hoje fui cortar o cabelo. Entrei e sentei-me, ele pôs-me aquela espécie de lençol escuro à volta do pescoço. A toda a volta de mim, na verdade, e regulou-me a cadeira.

-Como é que vai ser?
-Gostava de começar pela barba para depois saber como é que o cabelo fica melhor. Aliás, depois queria pedir-lhe umas dicas sobre manutenção, já que ela tem de chegar aprumada a Maio.
-Hummm... na verdade, eu de barba percebo muito pouco.
-Na verdade, também não percebe muito de cabelo e isso não me impede de vir insistir oito euros consigo todos os anos.
-Peço desculpa, como disse?
-Você ouviu perfeitamente. Não percebe nada de cabelo e eu venho cá insistir oito euros - oito euros! - consigo, uma vez por ano, todos os anos. Por isso, pode dar-me algumas dicas sobre a barba ou vai-se armar em cabrãozinho cheio de má vontade só porque eu sou Benfiquista?
-Faça o favor, não tenho condições para o atender. Tenha a bondade de sair.
Lancei-lhe o meu olhar mais aristocrático, de cima abaixo, pausado.
-Lagarto miserável. - arranquei o lençol do pescoço, arremessei-o contra a cara do barbeiro. -Essa sua atitudezinha anti-Benfiquista ainda há-de sair-lhe cara.
À porta, esperavam dois rapazes pela sua vez.
-Ui ui, que ainda por cima ele é todo Benfiquista - disse o que tinha um leão recortado no corte a pente 1.
-Olha, com quem é que joga o teu Benfica logo à noite, querido? Ah, pois é, não joga... - disse o da crista à Neymar, pintada de verde. Riram muito, os três. Pressenti naquelas risadas um orgulho de quem se sente vingado, por alguma razão.

(Para a posteridade: *sucedido na manhã do dia em que o Sporting se estreia na fase de grupos da Liga Europa.)

quarta-feira, 19 de setembro de 2012

O meu já não é maior do que o teu

Há certas realidades com as quais tenho dificuldades em conviver, determinados factos que gostaria de simplesmente eliminar, ignorar, de alguma forma, retirar da existência. Há coisas que me incomodam. Uma dessas coisas – eu vou tentar chegar ao fim do texto sem praguejar, mas não prometo – é o tamanho dos estádios. Sim, que o tamanho não conta, já sei, que o que importa é o uso que se lhe dá e que tenha capacidade para receber toda a gente que lá se queira sentar. Mas não me fodam – pronto, eu sabia… -, chateia-me profundamente olhar para este grupo da Champions e perceber que partimos logo em terceiro lugar no que respeita ao tamanho do nosso, sendo que o que vem atrás de nós é só um bocadinho assim mais pequeno. Desde quando é uma Luzhniki pode ser maior do que uma Luz? E um Camp maior do que um Estádio? Hoje, vá lá, vamos jogar ao Park e por lá entraremos sem sentir embaraço, que o nosso ainda é um pouco maior. Mas queria deixar aqui o meu desabafo: sinto muita falta daquilo que se mutilou. O Luís, se puder e se me estiver a ler, que, por favor, reponha lá os 55 mil que nos retirou. Sempre fui habituado a que o nosso fosse o maior e isto pare-me mal.

segunda-feira, 17 de setembro de 2012

O meu País e um par de botas

No sábado saí à rua com o povo e manifestei-me. Muito eu me manifestei no sábado! – e vi gente a manifestar-se: vinham de apitos, tachos, assobios, buzinas e aplausos, palavras de ordem, gritos em desordem e entrou até o sino da Igreja de Nossa Senhora de Fátima a repique, dando um toque mais ou menos cristão, mais ou menos sacristão, a um desfile democraticamente laico. Caminhei vários quilómetros e fi-lo de botas. Imaginei esta medida como preventiva – “não vá dar para o torto… sempre magoa mais que os chinelos” – mas a ideia saiu-me mal calculada, revelou-se uma falha estratégica, até porque a paz e a civilidade imperaram, felizmente. Depois de tanto tempo em liberdade, os meus pés ressentiram-se da opção pela dureza em detrimento do conforto e agora tenho um buraco no calcanhar direito. Um buraco revolucionário, aliás.

Isto lembra-me um episódio que o meu pai conta com orgulho ingénuo. Certo dia, há muitos anos, o Sporting estagiava em Mafra. O meu pai passou de carro por alguns dos jogadores que vinham descontraidamente do treino no relvado do mítico Estádio do C.M.E.F.E.D. – a sigla lê-se mafrensemente «cemiféde» e significa Centro Militar de Educação Física, Equitação e Desportos (entretanto, subtraíram ao nome a “equitação”, mas diz-se “cemiféde” à mesma) –, desciam a rua para o Hotel Castelão já em chinelos. Reparou no Cadete, que tinha pensos nos calcanhares. Era uma equipa de luxo a desse Sporting, que tinha os búlgaros também. O meu pai atirou então com desplante «ó Jorge, tu pede umas botas novas ao teu presidente que essas fodem-te os pés todos», ao que o Cadete respondeu com um sorriso gentil. Os pares de botas nem sempre são fáceis no trato, raramente são amáveis, ao contrário de Jorge Cadete. Hoje lembrei-me disto enquanto colocava o penso no calcanhar.

Foi uma manifestação das grandes, que juntou uma multidão rara, pela quantidade e pela diversidade. É estranho ver-se tantas pessoas todas juntas por algo em comum quando quase tudo nelas é diferente, dos interesses à roupa que vestem, da formação que têm ao dinheiro que ganham. Da cor da pele ao clube que amam. São demasiadas diferenças em tão poucos metros quadrados. E, no entanto, estávamos todos juntos e absolutamente de acordo.

Há momentos em que as diferenças importam pouco. Existe sempre um bem maior que nos une e nos puxa no mesmo sentido. Mas nem sempre é fácil aceitar essa unanimidade necessária, construída não por amor ao próximo mas por amor ao que nos é comum, com tantas pontas soltas, tantos antagonismos e tantas ignorâncias que temos uns dos outros. Eu não conhecia aquela rapariga de rastas, com uma tatuagem no pescoço, que tocava tambor num bidão de plástico azul e ora defendia qualquer coisa que eu não percebi muito bem, ora atacava o inimigo óbvio, aquele alvo fácil na testa do Pedro, o primeiro-ministro que só tem amigos no facebook, acho eu.

Houve alturas em que me desliguei e olhei em redor e me desidentifiquei, porque esquecia o que me levara ali. A certa altura, depois de passarmos no ponto de alta tensão na Avenida da República, diante do prédio onde, dizem, está instalado o FMI, chegámos a novo sítio de confrontos. Debaixo da Casa do FC Porto em Lisboa, onde alguns senhores, portistas, claro, assistiam da varanda ao passar do cortejo. Assobiou-se e insultou-se com grande despudor e sentido de inconsequência. Houve um ou outro que acendeu discussão com os portistas e estes reagiram com tranquilos «cala-te, corno!» e adornos feitos com as mãos. Deu mais para rir do que para ofender. Porém, despertou-me. Foi aquele momento em que o cosmos se alinha dando significado lógico a todas as coisas.

Daí em diante, sempre que uma ladainha revoltada se levantava num qualquer coro da multidão, eu imaginava na minha cabeça

«sou de um Povo lutador
Que hoje luta com fervor
Coooontra o seu maior rival
Os senhores de Portugal»

e apesar de um certo remorso por adulterar sem licença o Hino do meu Clube, considerei que a ocasião era de urgência e a minha falta justificada. Por vezes, trocava o último verso por «o terror do capital». Em momentos de maior hesitação e dúvida, prosseguia até «ser Benfiquista é ter na alma a chama imensa» e sentia um novo alento, acendia-se em mim um espírito de fraternidade e compreensão, mesmo por quem ali não era Benfiquista, porque a nossa luta era só uma e precisávamos de ânimo e estávamos todos do mesmo lado. Nasci Português por consequência de decisões geopolíticas que antecederam a minha vinda ao mundo, é certo. Mas foi graças a isso que nasci naturalmente Benfiquista. Estou muito grato ao meu País – não só por isso, claro, mas também por isso: porque existe e eu existo nele e sou do Benfica. Eu gosto muito meu País, quero-lhe muito bem. O nosso País é como o nosso Clube, deve ser tratado com muito amor e com muita dedicação, para que continue a existir forte, a olhar para o futuro, cheio de esperança, cada vez mais vivo.

quarta-feira, 12 de setembro de 2012

Mais vale tarde

O tema foi, felizmente, perdendo destaque na actualidade noticiosa. Mas há vinte e tal anos atrás, numa época em que o futebol era romântico - ou então era eu que começava a descobri-lo, mas a verdade é que ainda jogava o Maradona -, existia um terror que ensombrava os estádios, sobretudo os estádios do Reino Unido: o hooliganismo. No Fever Pitch, Nick Hornby aborda o fenómeno e fala do período mais negro do futebol inglês praticamente ignorando títulos e resultados. Porque, nesses tempos de violência, as mortes é que eram notícia, não as taças.

Dois episódios marcaram a década de 80, mas a história é feita de mais do que dois. No desastre do Heysel, existe uma clara e inequívoca relação directa entre a violência organizada e o trágico desfecho. Anos mais tarde, dá-se o inferno de Hillsborough - quem não se recorda daqueles rostos esmagados contra as grades... - e as primeiras conclusões apontaram para que o desastre tivesse acontecido, uma vez mais, por culpa do hooliganismo. Parecia óbvio e não seria estranho, porque em comum uma e outra tragédia tinham o Liverpool e os seus adeptos (que, pelo que li, não eram sequer os mais perigosos e temidos - esses eram os do Millwall; há um filme, The Firm - A Sociedade, que também aborda o assunto). No entanto, e regressando ao Fever Pitch, recordo perfeitamente que Hornby apontava para os estádios ingleses nos anos 80 e dizia dos mesmos que eram velhos, obsoletos e perigosos - chega a apontar o Estádio da Luz, o Velho Estádio da Luz, como um exemplo de modernidade, espaço e segurança típica do Continente, por oposição à realidade inglesa. Sobre Hillsborough, Hornby defende sobretudo duas coisas que contrariam a então versão oficial dos factos: a polícia interveio mal e fora de tempo, sem um plano de emergência; o estádio, desorganizado e mal medido (os sectores de "peão" não tinham uma capacidade rigorosa), era inseguro, com demasiados obstáculos, corredores estreitos, etc.

Hoje, 23 anos depois, o resultado do inquérito e da investigação independentes vem reconhecer também o bom senso de Hornby, mas reconhece sobretudo a inocência das 96 vítimas e de todas as outras pessoas que naquele dia foram a Sheffield ver a bola, apenas isso. O desastre aconteceu porque era inevitável. E as autoridades não só não tiveram a capacidade para reagir, como ainda encobriram a sua incompetência atirando para cima dos adeptos do Liverpool uma culpa que nunca fora deles.

Um senhor

-Master.
-Estou a meditar, Pequeno Vermelho. Deixa-me meditar.
-Master, tu já meditaste hoje.
-Mas o que
-Master, eu acho que o Rui Costa te reconheceu mesmo.
-Hum?!... Sim, meu apêndice dum feto de caboz, também eu penso assim. Porém, a minha modéstia impediu-me de assumi-lo publicamente, como é evidente.
-Ele sabe quem tu és e sabe que disseste mal dele.
-Eu… mas… como te atreves a insinuar tal coisa, seu… sua partícula de levedura?! Como te atreves? Eu nunca
-Disseste sim. Por causa do Witsel. Quando ele disse que «o Witsel é um miúdo que pode chegar a um clube de topo».
-Mas mas… eu… mas… nunca… eu mas mas…
-Disseste pois e eu guardei, está aqui :)
-Ah... isso... bom… mas isso não é bem dizer… enfim. É uma crítica concreta. Não é ao Rui Costa em abstracto. Não é um… vamos lá, portanto, um generalizando a todo o Rui Costa. É ao Rui Costa, aquele, especificamente, que disse isso… enfim… portanto…
-Eu acho que, se calhar, ele te queria bater, Master.
-… e também eu próprio acho que o Witsel é um miúdo que ainda pode chegar a um clube de topo. No fundo, concordo com o Rui. Gosto muito do Rui, tenho por ele um grande apreço, uma enorme estima.
-Tens medo dele, Master?
-O Rui é um senhor, o nosso 10 eterno! Livre-se aquele que, diante de mim, ousar desrespeitar o Rui, han? Livre-se!
-...
-Digo e repito: um senhor!

terça-feira, 11 de setembro de 2012

Breve episódio de fim de Verão

Eu ia pela praia, pelo carreirinho de madeira, evitando dois inconvenientes possíveis – embora opcionalmente, não em simultâneo: ou queimar os pés na areia que fervia, ou caminhar de chinelos pela areia, qual inuit a ir ver a caixa de correio – só que em quente. Era uma daquelas praias algarvias bastante conhecidas. Daquelas que em Agosto causam repulsa mas que, com o Setembro instituído e substanciado, se tornam aprazíveis: estão mesmo ali, próximas e abandonadas. Esta é grande, longa, fica muito despida de coisas sempre que a emigração regressa à sua condição e as famílias se vêem manietadas pelo calendário escolar. O Algarve fica muito mais bonito na segunda semana de Setembro.

Fazia o meu caminho com vagar e sem expectativas, estava um tempo manso e apetecia-me o tédio. De umas espreguiçadeiras ali ao lado levanta-se um homem, muito moreno, levava papéis para pôr no lixo, talvez fossem de gelados. Reconheci-lhe a passada, o gesto, a silhueta. Finalmente, olhei o seu rosto. Aquele mesmo rosto que chorou de alegria ao bater o penalty campeão do Mundo na baliza Sul, diante de mais de 120 mil, aqueles traços que choraram de amargura pela traição de marcar à sua Equipa.

Olhou-me de volta e eu senti uma imensidão de respeito. Tentei manter a compostura, esconder o olhar atrás das lentes escuras. Ele voltou a olhar, atento, perscrutador. E eu senti que ele me reconheceu. Não a mim, Diego; a mim, um Benfiquista. Olhou para mim e viu-me; e por uns momentos fomos grandes cúmplices silenciosos e desconhecidos. E tenho a certeza que se lhe tivesse dito «então Rui, ‘tás bom?» ele teria respondido calmamente «tudo bem. E contigo, Benfiquista?». Tenho mesmo a certeza.

Compromisso redentor

Há um peso que carrego. E por mais que argumentem com o Jesus, com os reforços, com a falta de reforços, com as arbitragens, com a sorte e com o azar, nada me absolve: o Benfica não foi bi-campeão em 2010-2011 porque eu falhei com o meu compromisso. É tudo uma questão de cabelo.

Corria o ano de 2010 - e corria muito bem. O Benfica liderava isolado, o Porto estava distante e o Sporting não entrava nas contas. «Ah, então e o Braga?»: o Braga é o Braga. O primeiro nome é Sporting, não nasceu para ganhar. E eu, cabeludo, assumi: quando o Benfica for campeão, rapo o cabelo. O Benfica foi, de facto, campeão. Na noite da consagração, perdi os telefones e os amigos e ainda cheguei a casa tarde, causando visível e lógico transtorno à Lady Verde, para quem o «mas querida, somos campeões!» mereceu um «ai sim? Do quê?», sem esperar por resposta.

Depois de tanta perda, e apesar do nobre ganho, presumi «pá, se a cena era sofrer, o sofrimento está sofrido». E não rapei o cabelo. Seguiu-se a pré-época e um crescimento saudável e contínuo da minha cabeleira campeã nacional, orgulhosa e pujante. Tudo isto sempre sob um olhar castigador da Lady de cada vez que me lembrava «eu devia rapar isto». A reprovação feminina é persuasiva. Em certos casos, traumática. E, assim, eu não cumpri a promessa.

Passou a pré-época e os primeiros sinais apareceram. Não só o cabelo estava mais fraco como, na baliza, na vez do Quim, apareceu um rapaz muito alto e sem jeito. Passámos a sofrer golos ridículos com regularidade e eu pensei «ah, isto é só porque é contra o Nyon, quando for a sério...». Ilusão, como veio a comprovar-se. A época começou e os golos ridículos sucederam-se, faltavam vitórias e a mim atormentava-se-me a consciência. Tomei uma decisão: «vou rapar o cabelo!» e rapei.

Os resultados foram imediatos: o Benfica começou a ganhar e a fazer golos, o Roberto já quase não os sofria muito ridiculamente. Tudo corria bem. É uma pena que a minha decisão tivesse surgido demasiado tarde. Surtiu efeito, mas apenas para me castigar sem piedade. O Benfica ganhou 19 jogos consecutivos, nem isso foi suficiente para chegar ao primeiro lugar; esse foi matematicamente conquistado no nosso Estádio, diante dos meus olhos, da minha impotência, da minha frustração e, sobretudo da minha culpa.

Encontrei, como bom adepto do belo-desporto, o fraco consolo na certeza de que iria, cheio de saudades, ao Jamor, ver o jogo da Taça. Só faltava receber o Porto em casa e ampliar - ou até mesmo apenas aguentar - uma vantagem de dois a zero sacada com méritos no Dragão. Deixei crescer barba e bigode, reuni amigos, reservei garrafãoes de vinho e estabeleci: vou ao Jamor no meu estado mais Benfiquista de sempre. Íamos todos, estava combinado. O bigode era obrigatório até entre a facção feminina.

No entanto, e apesar de termos o vinho e os bigodes prontos, os portistas vieram à Luz fazer-nos a desfeita debaixo das nossas barbas. Coisa ruim. 3 a 1 para eles com uma exibição memorável do Falcao - e o nosso de honra foi por piedade, para o Cardozo marcar de penalty nos descontos. Era um sinal: com pêlos e promessas não se brinca. Um homem é um homem! E o Benfica perdeu o quanto havia para perder. Por culpa minha.

Ver o Benfica na final do Jamor não é o sonho de um Benfiquista: é uma tradição que faz parte do ser Benfiquista. E faz-me falta. Muita falta.

Aqui em baixo, podem ver a minha barba de Benfiquista. Segundo o Senhor Mário Coluna, faz-me falta uma gilete - mas não tanto como me faz falta ver o Benfica no Jamor, digo eu.

Podem clicar para ver mais em detalhe. É uma barba bonita. Já tem meio ano.

E eis o meu compromisso redentor: o Benfica vai ao Jamor e eu estou lá - não com esta barba, mas com o bigode que sobrar dela. E os garrafões de vinho e os amigos, os cachecóis e as bandeiras. Mas, sobretudo, comigo de bigode. Eu quero a festa da Taça. Sim, eu sei que o presidente quer um clube forte a nível mundial. Mas eu não peço tanto. Apenas isto: o Benfica na final do Jamor. A minha barba por esse jogo!

PS: reparem que alterei, inclusivamente, a foto de perfil.

quarta-feira, 5 de setembro de 2012

Cambada de impagáveis, é o que eles são!

O negócio, afinal, não é dinheiro. Leio a imprensa desportiva do dia e fico desapontado comigo mesmo, com a minha má fé, por ontem ter pensado e escrito – apetece-me sempre que o particípio passado de «escrever» com o verbo «ter» seja «escrevido», não sei já o tinha dito – que o dinheiro é que fazia a terra dar umas voltas. Witsel, para começar, não se fez vender ou negociar pelo “dinheiro”, essa motivação frívola, incompleta, moralmente pobre. Nada disso: Witsel foi para o Zénit pela razão mais simples que existe, no fundo: porque qualquer jogador sonha jogar no Zénit - ah!, viver na bonita S. Petersburgo, desfrutar do seu clima ameno e das tardes plácidas nas margens do Neva. E claro «dar um passo em frente na carreira», assim se refere o pai de Witsel a esta passagem do belga de Lisboa para a antiga Leninegrado. O médio não queria renovar o contrato com o Benfica, nem mesmo antes de ter, preto no branco, uma declaração de amor de quase 5 milhões de euros por ano, pagos pela Gazprom, porque simplesmente ambicionava, um dia, vestir aqueles bonitos bibes em azul-bebé. Fica claro que o interesse do jogador nesta mudança é puramente desportivo, diria quase sentimental – e olhando para o palmarés dos russos, percebe-se o porquê. Não há Real Madrid nem Bayern Munique que lhes faça sombra. Fico feliz não só pela realização do sonho do pequeno Axel; mas mais feliz fico pela sua sobriedade, que não se deixa embevecer nem deslumbrar com contas bancárias principescas.

Quem também diz que afinal a cena não é os euros é Cristiano Ronaldo. Este caso já não me deixa tão feliz, uma vez que estava a vislumbrar em Cristiano um símbolo da minha luta pessoal contra esses aldrabões das finanças e dos impostos. O que é então que o deixa infeliz, miserável, taciturno, melancólico, deprimido? Cristiano, enigmático, não esclarece. Diz apenas que, um dia, há-de provar-se que não era o dinheiro que o entristecia. E não me custa acreditar. No caso de Cristiano – e de Witsel, já agora – suspeito que o dinheiro não seja a parte mais deprimente da sua vida.

terça-feira, 4 de setembro de 2012

De roda dos milhões

Não sabia por onde começar até há uns minutos atrás, quando soube que «a tributação dos impostos deixa Cristiano Ronaldo triste» e começo mesmo por aqui: Cristiano, estou contigo. Se há coisa que me deixa triste é ter de pagar impostos e assistir ao que o Estado faz com esse dinheiro, que me custa a ganhar e que nunca me sobra: tapar buracos financeiros, compensar erros de gestão de outros governantes, pagar prestações de compras sem explicação, pagar indemnizações de irregularidades contratuais, pagar estudos de projectos, pagar estudos de estudos de projectos, pagar estudos de viabilidade de projectos depois de terem sido feitos os projectos, pagar auditorias ao pagamento de estudos e encomendar novos estudos de futuras auditorias que provem que todos os estudos foram bem estudados – exceptuando os casos de determinados governantes (não vou dizer nomes) cujos estudos ficaram assim um bocadinho por estudar. Posto isto, amigo Cristiano: a tua tristeza é a minha tristeza. Sendo que a tua tristeza é, precisamente à tua medida, uns milhões de vezes maior do que a minha, na proporção directa do que o Estado Espanhol irá reter à tua conta e do que o Estado Português irá cobrar à minha. Tenho, por isso, pena de ti.

O drama de hoje, já se deve ter percebido, é o dinheiro. O dinheiro faz o vocábulo ficar redondo, já cantava a Liza Minnelli. Por dinheiro os nossos jogadores fazem qualquer coisa – por menos dinheiro, como se pode ver pelo parágrafo acima, o Cristiano Ronaldo faz qualquer coisa, também, mas em muito melhor, como é seu apanágio. Por dinheiro, os jogadores chegam a jogar no Benfica, por exemplo. E isso é notável. O dinheiro é um instrumento de persuasão, em certos casos, pernicioso. Por exemplo, no meu caso: faz-me trabalhar e encarar o assunto com naturalidade, quando natural, mesmo, seria eu fazer coisas de que realmente gostasse. Tais como ir ao futebol. Porém, preciso de dinheiro para isso. É por esta razão que não olho nem com espanto nem com tristeza para o que o dinheiro fez fazer o Javi García ou o Axel Witsel. A minha pena termina aqui: eram bons jogadores e eu gosto de ter bons jogadores. De resto, por mim até podem ser as novas concubinas dos magnatas que lhes compram o corpo e a alma, tanto se me dá.

Agora que já saíram, a minha preocupação, a minha atenção, o meu carinho e a minha fé focam-se nos que ficam. Esses, os que vestem a nossa Camisola, são todos quantos me importam. A minha preocupação e a minha atenção – mas não o meu carinho e muito menos a minha fé – concentram-se também na falta de precaução em toda esta matéria. A venda destes dois jogadores não constituiu surpresa, eram nomes vistosos, futebolistas cheios de potencial, os pretendentes que tinham eram vários. E é na falta de surpresa que reside a minha insatisfação: porque não se acautelou a saída – já nem digo de ambos – de um deles? Esta pergunta não fui eu que a inventei; esta pergunta está a martelar a cabeça de todos os Benfiquistas desde há quatro dias para cá, com pancadinhas suaves, mas ritmadas. E eu repito-a para que aqueles a quem a pergunta não melindra possam, também eles, partilhar da nossa sensação: porque não se acautelou a saída de um deles?

Antes de terminar, e porque o texto está a ser mais previsível do que o desfecho do nosso próximo match em Camp Nou, queria deixar aqui o meu contributo criativo, de acordo com a gestão e planeamento dos nossos plantéis, ano após ano. E faço-o como contribuinte ronaldamente triste, porque também a mim me entristece este excesso de criatividade de quem nos conduz: com as saidas de Javi e Witsel, entraram 60 milhões de euros. A cláusula do Falcao é de 55 milhões euros. Só estou a dizer.

quinta-feira, 30 de agosto de 2012

Iniesta, hein?

Vamos lá assentar aqui uns pontos: qualquer votação para melhor futebolista de qualquer coisa da qual constem Cristiano e Messi e que não atribua a um deles o mencionado título, está ou errada ou não está a levar nenhum desses senhores em conta - provavelmente por colocá-los automática e naturalmente acima dos demais.

Aceito a segunda hipótese e até deixo uma sugestão: enquanto jogarem, o prémio fica atribuído por decreto "aos dois" (aqui, como as opiniões se dividem, o melhor é dá-lo mesmo aos dois), através da criação de uma categoria especial que seria integrada apenas por eles próprios - a de aliens ou de deuses ou de ungidos ou de supremos, qualquer coisa que não fosse "jogador" ou "futebolista", mas antes os distinguisse e elevasse, sem dúvidas, misturas ou equívocos.

Não sucedendo a segunda hipótese, estaremos perante uma violentíssima fraude, uma distorção ridícula e completa dos conceitos de "melhor" e de "futebolista". O Iniesta foi campeão europeu? Parabéns: e é por isso que tem lá a mdealha em casa. Ah, mas ele merece reconhecimento? Merece, com toda a certeza (e toda a minha franqueza) - e é por isso que ficar em terceiro teria sido merecidíssimo, justificadíssimo, diria mesmo lógico ou óbvio. Mas vamos ser sérios. Custa-me ver que esta "homenagem" a um jogador seja o desvirtuar de significados que deviam ser protegidos, sagrados. Toda a gente sabe que Iniesta não é o melhor, toda a gente vê que nem sequer se aproxima dos outros dois. Mas "ah, coitadinho, ele merece e de outra forma nunca ganharia". Temos imensa pena. Porém, isso sucede com ele e... com todos os outros.

segunda-feira, 27 de agosto de 2012

Um aniversário diferente

- Master…
- Schhtt… Estou a meditar, Pequeno Vermelho.
- Mas, Querido Mas…
- A tua insignificância não tem a felicidade de ser imperceptível, Pequeno Vermelho. Estás a importunar-me. Durante a meditação do Master…
-… deverás silenciar-te, afastar-te, sossegar-te e deitar-te também tu a pensar. Sim, Master.
- O que te demora? Porque não estás também tu a pensar, minha metade de um terço de uma micronésia a flutuar à deriva num planeta do tamanho de Saturno?
- Porque… Master, chegou um mensageiro.
- E desde quando é que
- É uma mensagem do presidente Vieira, Querido Master.
- O quê? Do presidente Vieira, o próprio?
- O próprio, Master. Assinada e tudo.
- Garantes? Ajuda-me a levantar.
- Garanto. Está aqui.
- É… de facto, uma assinatura. Ora lê. Lê-me o que diz.
- Diz assim:

«Caro DIEGO, neste dia especial o SLBenfica deseja-lhe um fantástico aniversário cheio de alegria e mística. Parabéns!

O Presidente
Luís Filipe Vieira»

- O “DIEGO” é mesmo assim, com letras grandes. Todo.
- É atencioso, de facto.
- Querido Master, fazes mesmo anos?
- Sim, criaturinha. Faço mesmo anos.
- Fazes muitos?
- Oh, pergunta difícil. Os anos que se acumulam nunca são poucos, mas também nunca são demais…
- Hum, pois… E por que te deitas a pensar no teu aniversário? Não devias festejar, estar feliz, desfrutar das boas sensações que uma vitória gorda nos permite, Master?
- Sabes, minha sub-fracção de um milímetro pequenino, nem tudo é felicidade. Um aniversário e uma vitória não são suficientes para apagar a amargura que sinto.
- Amargura? Com o Benfica?
- Amargura… pelo Benfica.
- Mas…
- A verdade é que é um dia triste, Pequeno Vermelho. Hoje, pela primeira vez na minha vida, tenho mais anos de existência do que o Nosso Amado Clube tem títulos de Campeão Nacional.
- Assim tantos?
- Assim tantos. Mas tal, por si só, não deveria trazer-me angústia. O que me magoa é que, quando fiz 14 anos, atingi a metade exacta dos campeonatos que ganhámos; quando completei os 15, superei essa metade – mas fomos campeões nesse ano. E agora, ainda tão novo, supero irreversivelmente a contagem do nosso troféu mais fundamental. É doloroso.
- Compreendo…
- Ora, vai ali buscar o rolo de papiro, a pena e o tinteiro, Pequeno.
- O tinteiro pequeno?!
- Não, Pequeno. O tinteiro… de uma forma geral. O Pequeno és tu.
- Sim, claro, Querido Master.
- Estás preparado? Vou ditar-te uma mensagem.
- Podes dizer, Master.
- «Caro LUÍS» - escreve assim, com as letras todas grandes, para ser atencioso - «Caro LUÍS
- Outra vez?
- Não, não. Estava só a recapitular. Para não me perder. «Caro LUÍS, neste dia especial, o Diego deseja ao Benfica uma única coisa: que o Benfica tenha uma época fantástica e que, em Maio, possamos festejar, todos juntos, o 33.º - não como eu hoje festejo o meu, mas com a euforia que uma grande vitória merece. E que esse seja o primeiro de 10, de 20, de 30, de centenas de campeonatos ganhos consecutivamente para que o Diego não tenha de sentir, nunca mais, por um período superior a 9 meses, que tem mais anos de existência do que o Benfica possui Campeonatos Nacionais no seu palmarés.

O Master
Diego Armés» e deixa-me assinar.

- Toma.
- Está feito. Agora leva o papiro ao mensageiro e diz-lhe que se destina ao Luís. E eu, bom, eu vou voltar aos meus pensamentos, às minhas contas, à contemplação do tempo que passou, a pens…
- Vais ver vídeos do Benfica no Youtube? Do Rodrigo e do Aimar?
- Ehrm… Bom, talvez mais lá para o fim da tarde. Se tiver tempo… Vá, agora vai, Pequeno, vai.

quinta-feira, 23 de agosto de 2012

Breve nota editorial extraordinária

No top-10 das palavras-chave de busca que trouxeram gente a este blogue no decorrer do mês de Agosto, a expressão futebolística «cinquentonas fogueteiro» surge na 10.ª posição. Espero ter sido útil nesta demanda de alguém com gostos muito específicos.

Fantasia de futebol

Sejamos organizados, metódicos: da esquerda para a direita, sobre a mesa de apoio, uma pequena taça com castanhas de caju, outra com amendoins salgados e uma última com pistáchios com casca. Em frente desta, um pires. Para as cascas. Os chinelos do Benfica nos pés, a base para o copo, o próprio copo; da lata, outrora de Amstel e hoje de Heineken, escorrem minúsculas gotas. Esta lata tem de ser aberta, caramba! Não, primeiro ligo a televisão. Diz assim o senhor sobre o genérico de um programa que, aparentemente, dava dinheiro a velhinhos e no qual as pessoas se riam muito, «não perca já de seguida o Celtic – Benfica, jogo da Liga dos Campeões, em directo e em exclusivo na sua TVI». Entram os chamados compromissos publicitários, faltam mais de dez minutos para o início do match e eu penso “o senhor que falou durante o genérico não usou a popular expressão «dentro de instantes» - «já de seguida» pode demorar um bocado”. E demora, como previsto, demora. Vivo esta espera com um agradável sentimento de masculinidade: enquanto bebo a minha cerveja e espero pelo futebol, deslumbram-me com anúncios a automóveis cheios de estilo e eu fumo um cigarro, como cajus, amendoins e pistáchios, sempre por ordem, um golinho na Heineken, mais automóveis, gosto mesmo disto, e a seguir anúncios a cervejas, quase não pode melhorar, anúncios a pneus, a reparadores de vidros que reparam muito rapidissimamente os seus vidros, num instantinho, mais um gole na Heineken, caju, amendoim, pistáchio, por esta ordem, é Fords Focus pelo mundo inteiro e cervejas de várias marcas para fazer amigos e matar sedes e conseguir miúdas giras, tudo enquanto eu espero muito descontraída e masculinamente pela bola e bebo, com a suavidade de um homem que está bem na vida, a minha Heineken.

Meto-me a pensar nas coisas. Como seria há 150 anos atrás? Momentos antes do match de um jogo ainda sem nome definido – e em que as balizas não tinham tecto, sequer – se iniciar, os cavalheiros, rivais, juntavam-se a um balcão improvisado cofiando barbas e afiando bigodes. Os vendedores de carroças e cavalos aproveitariam para publicitar os seus artigos, emoldurando-os com finíssimas damas de chapéus muito elegantes. E os cavalheiros rivais conversavam sobre bens ancestrais, tradições que ao tempo não tinham sequer bolhinhas «tem de provar esta cerveja, meu caro, é a receita do Convento de Vialonga, uma maravilha» e o outro, retorquindo «não vai mal, não vai mal… mas prefiro a do Mosteiro de Leça», «do Balio ou da Palmeira?», «de cevada, ora essa…» e fumavam cigarros e apreciavam charrétes coupé à espera de um jogo que ainda se jogava a meias entre os pés e as mãos. Muito evoluiu o homem!

Vai começar. Entra o hino – mas, alto!, este hino vem retocado. Não entendo o que se passa. Parece-me a voz do Paulo Gonzo. É mesmo a voz do Paulo Gonzo. E a letra também foi mexida. Agora canta o José Cid. Aparentemente, a letra enaltece a glória, sim senhor, pois claro. É a história de um pequeno herói, o trilho percorrido por um menino que nasceu aleijadinho filho de uma mãe que era ceguinha e prostituta e que pesava muito, mas que lutou pelo seu filho e o pôs a jogar nas escolinhas de um clube imaginário, em Alcochete. A criança entretanto cresce e ultrapassa uma crise de adolescência em que se mete nas drogas, derivado das más companhias e da influência de uma namorada muito malvada – tudo isto após a morte da mãe, vítima de doença prolongada –, e regressa aos relvados decidido a honrar a memória de sua mãe. Esta letra é muito bonita e o dueto Gonzo – Cid só a eleva ainda mais. Mas o melhor estava guardado para o fim, quando, com aparato épico equivalente àquela parte «da chaaaaaaampiooooooooons», entra o Toy a cantar o momento em que o menino, agora jovem adulto, é campeão europeu ao serviço de um clube qualquer colossal, cujo nome não é mencionado, em pleno Estádio de Wembley e se esvai em lágrimas apontando para o céu e dizendo «mãezinha, mãezinha», enquanto beija a taça. E eu arrepio-me todo a ouvir isto.

As equipas estão a subir ao relvado, o comentador da TVI mal consegue falar, notoriamente emocionado pela versão do hino que a estação preparou para as emissões da Champions League. Nem o onze inicial do Benfica o homem consegue ler. Caju, amendoim, pistáchio e, zás, um golinho de Heineken. Pode começar.