segunda-feira, 17 de junho de 2013

Natural do sítio errado, naturalmente do Benfica

Uma estranha conjugação de factores aliada a uma inusitada sucessão de eventos impediram que eu nascesse no Estádio da Luz.

No longínquo ano de 1979, tal como hoje, os meus pais viviam em Mafra. Em 1979, Mafra ficava longe de Lisboa. Na altura, para se "ir a Lisboa" faziam-se preparativos - levava-se, por exemplo, tupperwares com pastéis de bacalhau. Não havia auto-estrada e os carros bebiam muito - o meu pai tinha, salvo erro, um FIAT 1500, que não era propriamente um exemplo de como poupar - e andavam pouco.

Quando as pessoas de Mafra iam a outra terra, normalmente era à Ericeira, que tinha mar, ou à Malveira, que tinha feira. Não iam a Lisboa. Se alguém queria uma experiência mais urbana e cosmopolita, ia-se a Torres Vedras, que era uma espécie de Mafra mas em maior e tinha cinema. Não havia necessidade de perder uma hora e meia pela estrada nacional, atravessando, abreviadamente e por ordem, Alcainça, Malveira, Venda do Pinheiro, Lousa e Ponte de Lousa (nunca me lembro qual delas vem primeiro), Pinheiro de Loures, Loures ela própria, Flamenga e Carriche, roçando ainda as fronteiras de Ponte de Frielas e de Odivelas, lá mais à frente, até chegar à tabuleta que eu sempre achei grande mas não o suficiente para assinalar a entrada na capital do país.

Ia-se a Lisboa ao Jardim Zoológico, muito raramente, ou ver o Benfica, um pouco mais frequentemente. Mas não se passava a vida no Estádio da Luz: era mais as quartas-feiras europeias e os jogos para festejar o campeonato. Também se ia a Lisboa para apanhar a Ponte Sobre o Tejo que, na altura, ainda tinha o novo nome de 25 de Abril fresquinho e o nome velho de Oliveira Salazar enraizado.

Em 1979, as pessoas nasciam nas maternidades e cada um tinha a sua. Se hoje uma pessoa vai de Elvas a Badajoz para ser nascida, naquela altura nascia-se um pouco por toda a parte - exceptuando em Mafra, cuja maternidade possuía uma característica que sempre a distinguiu das demais: a intermitência. Ora funcionava, ora nem por isso. Dá-se inclusivamente o caso de haver crianças do mesmo ano, cujas famílias habitavam uma no segundo esquerdo, outra no segundo direito, de um mesmo prédio da Rua do Hospital, por exemplo, que são naturais uma de Torres Vedras (S. Pedro e Santiago) e outra de Mafra.

Eu poderia ser a criança do primeiro exemplo, porém nunca vivi na Rua do Hospital. A minha rua era a José Elias Garcia. Ruas elias garcias existem em praticamente todas as terras, por mais que não se compreenda assim de repente a extraordinária popularidade que esta personalidade praticamente desconhecida veio a ganhar ao nível da toponímia. Para simplificar a explicação, chamar-lhe-ei "inexorável fervor republicano". Não sendo eu um republicano, afeiçoei-me desde os meus 4 anos a Elias Garcia e cheguei, eu próprio, a sentir fervor quando me deparei com o seu nome numa outra placa de uma outra rua de uma outra terra qualquer: oh, o meu Elias Garcia. Não sabia quem fora o tal José, mas estava-lhe muito habituado. Uma pessoa afeiçoa-se.

Em 1979, ano longínquo, as pessoas não nasciam em estádios. Em 1979, em Mafra, as pessoas começavam a habituar-se à ideia de não nascer em casa, mas sem exageros: na Rua do Hospital ou em Torres Vedras, a ordem era para se nascer na maternidade. Em Agosto de 1979, a maternidade de Mafra estava encerrada, o que veio a fazer de mim, para efeitos de registo civil, um inesperado Torreense, ainda que o tempo que passei nessa fortaleza do Oeste tenha sido, na sua esmagadora maioria, dedicado ao Campo Manuel Marques, ora sobre a relva, ora nas suas bancadas ou ainda no relvado sintético que havia ao lado e que era quase tão abrasivo quanto o piso de Alcatrão do meu Ciclo de Mafra.

Esta dedicação Torreense de que falo só viria a dar-se, no entanto, em 1993-1994 e não justificaria, só por si, a naturalidade que trago no BI. O critério do Arquivo de Lisboa para me atribuir origem foi mesmo o da maternidade que me viu ver a luz do dia pela primeira vez. E é por isso que eu lamento profundamente que a Luz não tivesse sítio para se nascer - até porque o nome do Estádio é, talvez, o mais adequado para o efeito.

O meu nascimento noutro sítio que não o Estádio da Luz é, portanto e como se pode comprovar, fruto de uma anárquica conjuntura. Falo do assunto porque a 27 de Agosto de 2013 se comemoram os mais ou menos 27 anos da ocorrência do 27 de Agosto de 1979. E eu, que não nasci na Luz por manifesta infelicidade, pretendo fazer de um lugar junto ao varandim do piso 3 - sector 6 uma das minhas principais residências para 2013-2014, de modo a comemorar a efeméride de ter vindo ao mundo no sítio errado. Há coisas na vida que não podem ser emendadas mas que, ainda assim, vão a tempo de levar correcção.

quinta-feira, 6 de junho de 2013

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Estava a falar com o meu amigo Moleirinho - que está em Moçambique a convalescer do Benfiquismo junto a águas tépidas, a panaceias de camarões com trinta centímetros - e perguntava-me ele «já estás recuperado?». E eu fiquei a pensar «estarei?».

Os dias passam e a possibilidade do esquecimento, ao invés de me apaziguar, deixa-me em pânico. Ainda não estou recuperado e ai de mim que venha a estar! Acordo todos os dias, desde o dia 20 de Maio, a acreditar que podemos ser campeões ainda este ano. E continuarei, creio eu, pela vida fora, perpetuando esta sensação insana, como se a época não terminasse nunca: 2012-2013 não teve nem vai ter desfecho. Não pode ter tido, já que eu não vi o Benfica a ser campeão e eu sei perfeitamente que o Benfica ia ser campeão. Vamos ser campeões, sim senhor, nem que seja no infinito. Qualquer outra possibilidade dá erro na minha compreensão: simplesmente não é processável.

Sinto saudades do Estádio da Luz, todos os dias penso nessa gigantesca casa de família ondulante e ruidosa. A propósito, lembro-me de estar no Jamor, durante o picnic de bigode. Depois de várias minis, naturalmente, fui persuadido pela natureza a estabelecer comunicação mais íntima com um eucalipto, um dos muitos que nos rodeavam. O ar livre, o cheiro a floresta e a febras na brasa, a brisa no rosto, os pés sobre as ervas e o primeiro pensamento que me ocorreu foi «estas casas-de-banho são muito bonitas... mas continuo a preferir as da Luz».

Não estou recuperado, não. Tenho o Benfiquismo a repousar no escuro, em cascos de carvalho, a ganhar gravidade e robustez. E, sobretudo, continuo à espera de ganhar, que isto ainda não acabou. Não pode ter acabado assim.

segunda-feira, 3 de junho de 2013

Agradecimento sincero e humilde aos campeões da Europa

Estava a ver fotos da equipa de hóquei a ser recebida no Pavilhão e pensei «como é que eu nunca fui ver um jogo de hóquei?». É nestas alturas que me apercebo do meu fundamentalismo futebolístico. É curioso: se me perguntarem se sou pelo Benfica ou pelo futebol, natural e imediatamente responderei «sou do Benfica», porque é ao Benfica que pertenço. Mas se pensar um pouco mais, noto que sou um Benfiquista primário do futebol, muito pouco dado a transigências ao ecletismo.

Durante toda a minha vida, vi o Benfica ser campeão da Europa duas vezes: uma em futsal, no Pavilhão Atlântico; outra em hóquei em patins, na caixa portista. Na primeira ocasião, tentei induzir em mim a sensação de "campeão europeu". O melhor que consegui foi um pequeno simulacro, como se, de repente, a Europa fosse uma coisa pequenina. Fiquei feliz, senti orgulho, uma leve exaltação, fiz um brinde e disse em voz alta "campeões da Europa". A frase soou muitíssimo bem.

Ontem o meu primeiro pensamento foi menos poético, mais sentimental: «que heróis», foi tudo o que me ocorreu. Em seguida, temi pelas carreiras dos atletas do Porto - para quando a extinção da modalidade no clube? -, mas logo voltei a focar-me nos nossos. Dei por mim feliz, novamente orgulhoso, a sentir uma leve exaltação, a querer fazer um brinde, a pronunciar para mim a frase mágica "campeões da Europa". Soa cada vez melhor.

Ser campeão da Europa será sempre um feito histórico. Ser campeão da Europa numa modalidade histórica e de grande tradição em Portugal no território do nosso maior adversário da actualidade dá-lhe um significado ainda mais nobre - e, sobretudo, levando em conta as circunstâncias que antecederam o jogo.

Eu queria chegar a um ponto e ando aqui a empatar tempo: na verdade, eu não me sinto campeão europeu. Campeões são eles, os que jogaram e quem os apoiou durante o ano, durante a carreira, durante a vida. Campeão europeu é o adepto que nunca se esqueceu deles durante toda a época, nos bons e nos maus momentos. Eu sou só um Benfiquista do futebol.

Estou muito, muito grato a toda a equipa de hóquei por ter elevado o nome do Benfica ao ponto mais alto, permitindo-me acrescentar um brilho de orgulho à minha paixão. Mas sinto alguma mágoa - na verdade, sinto-me de fora - por não lhes ter dado a atenção e o apoio que, como demonstraram, merecem. Sou mesmo um simples Benfiquista do futebol: ao mesmo tempo que me comprometo comigo a ir ver jogos de hóquei na época que vem, vou pensando no melhor lugar do Estádio - que saudades do Estádio - para o meu Red Pass. E é então que se me enche o peito e sinto uma exaltação grave, brilham-me os olhos.