segunda-feira, 6 de janeiro de 2014

O símbolo e a cor

Uma última homenagem deve obedecer a determinados preceitos. Comecei pela roupa. Este luto é encarnado, mas o cinzento triste deste dia e o carácter de despedida da ocasião empurraram-me até tons mais sorumbáticos: calças pretas, camisola cinzenta bem escura, casaco negro. Por dentro, uma camisa em quadrícula vermela e branca, porém discreta. Debaixo da camisa, uma t-shirt bordeaux. Experimentei vários cachecóis, todos eles encarnados. Mas o berrante da cor pareceu-me inapropriado - é dia de perda, não me apetece berrar com o cachecol. Preferi o bordeaux, uma vez mais. Partilhando com o vermelho a essência magenta, pareceu-me o tom adequado - mais sussurro, menos gritaria, a mesma natureza Benfiquista.

Há quem considere o luto nacional de três dias um exagero de Estado e há quem classifique a tristeza apaixonada de quem chora Eusébio como "ridícula". Sobre o luto nacional, não me pronuncio - eu faço o meu, à minha maneira, com ou sem Nação enlutada. Quanto ao "ridículo" aceito-o com humildade. Aprendi com o tempo que a capacidade de ser ridículo é essencial ao ser humano. Há quem pretenda que o Homem seja um complexo biomecânico dotado de intelecto e governado pela razão e pela lógica. Sendo o Homem um bicho inteligente, espera-se dele que seja todo ciência e bom senso. Eu discordo dessa ideia e reclamo o meu direito à paixão e à veneração.

Pode parecer patético ter símbolos e idolatrar em pleno século XXI. Pode até sê-lo, para além de parecê-lo. Sucede que tenho mesmo ídolos e que hoje me despedi do maior de todos eles. E é isso que me faz triste, essa perda, esta despedida. Não são a surpresa nem a carga trágica do evento que me deixam de rastos, é o vazio e a ausência que ontem nasceram que me fazem sentir mais abandonado e, de um modo um tanto infantil, menos protegido.

No Estádio, a consternação ia sendo disfarçado pelos cânticos incansáveis das claques que pontualmente se alastravam aos milhares que povoavam o primeiro anel. Aguardava-se a chegada do Rei com paciência. Num momento de silêncio mais longo e pesado dei por mim a desejar que ele não chegasse, que fosse tudo um engano e que o speaker dissesse «meus amigos, o Rei Eusébio teve alta», mas o speaker ligou o microfone e disse, com voz grave, devagarinho, «vai entrar no Estádio Eusébio da Silva Ferreira» e ainda o «Ferreira» não estava completo já o aplauso soava, apoteótico.

Quando o carro parou, a multidão suspendeu-se sobre os gestos da cerimónia: abriram a porta e prepararam-se para tirar de lá de dentro o ataúde. Ao longe, vislumbrei o vermelho da nossa bandeira, a cabeça da águia no símbolo, várias mãos a arrumá-la sobre o tampo do esquife. E então Eusébio foi levado em ombros ao centro do relvado onde um trono horizonal o esperava e eu imaginei-o naquele seu gesto inesquecível, de mãos no ar, aplaudindo quem o aplaudia numa volta lenta de 360º sobre si mesmo.

Nunca o aplaudi enquanto, no relvado, nos defendeu a cor com a bola nos pés abençoados - descontando a ocasião do seu 50.º aniversário, mas então era um jogo de amigos. Nasci em 1979, no ano em que Eusébio se retirou. Não culpo os meus pais, que me fizeram quando puderam, mas tenho pena que os meus 34 anos de Eusébio tenham sido a vê-lo ora de fato e gravata, ora de fato de treino com a toalha branca enrolada na mão. Por isso hoje não poderia deixar de aplaudi-lo na sua última subida ao relvado, poucas horas antes de descer à terra, poucas horas depois de ter ascendido ao Panteão do futebol.

A urna regressou ao carro e eu vi o Eusébio a enxugar as lágrimas à camisola pela última vez. Começou então a marcha lenta da sua volta Olímpica, Eusébio escondido de braços sobre o peito, Eusébio de braço direito erguido acenando aos súbditos como quem se despede. E o aplauso geral começou com cadência mansinha. À medida que Eusébio corria devagarinho em redor da relva, o burburinho ia aumentando. Até que o carro parou na curva dos Rapazes Sem Nome e eu senti uma aflição na garganta e os olhos marejados. Ao meu lado, um senhor mais velho, daqueles que se lembram bem do Eusébio aos pontapés à bola, limpava as lágrimas com o lenço com que acenava. Eusébio passou depois em frente a mim, as pessoas atiravam-lhe cachecóis e eu não conseguia parar de aplaudir. Quando, na última curva, o cortejo voltou a estagnar, quis acenar-lhe um adeus sincero, um adeus visceral, do fundo do estômago, mas o meu corpo fez-me aplaudi-lo insanamente, como se todas as forças que fui juntando ao longo do dia tivessem como destino aquele aplauso frenético.

Depois o carro saiu, o Eusébio foi-se embora.