sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014

Aquela palavra distinta

É uma das mais brilhantes palavras da língua portuguesa e chama-se "foda-se". Com o tempo e o uso, foi-se afastando lentamente do significado primordial que o latim lhe atribuía e a associava a escavação, perfuração, penetração ou rompimento, até se tornar, nos dias que correm, numa arma de arremesso verbal, muito mais do que num signo recheado de significado concreto.

Não se tratando de uma arma das mais pesadas ao nível da ofensa, tem a seu favor o efeito e os sinais de um impulso forte e a verdade franca que só as expressões de abstracção universalmente aceite podem conter. Um "foda-se" é uma explosão rápida mas intensa, simples mas incisivamente clara em relação a tudo o que se pensa e se quer dizer no milissegundo imediatamente anterior ao da sua detonação.

Curta, pobre nos contornos fonéticos, marginalizada em vários contextos sociais e atrelada a um breve mas pesado sufixo que a reflecte na direcção do próprio alvo ou de um abstracto inconcretizável, a palavra "foda-se" é, ao contrário do que a descrição pode sugerir, uma expressão rica em virtudes. Diria mesmo que tem uma existência nobre - sempre digna e composta, coexiste entre banalidades, palavrões e erudição com um à-vontade elegante.

De entre estas virtudes, destaco no "foda-se" uma raríssima - senão mesmo única - qualidade: apesar da sua essência verbal, a palavra nem sempre carece de verbalização. A sua peculiar elasticidade permitiu que, com a cultura, o jeito e o hábito, o ser humano aprendesse a revestir com ela o olhar, os lábios e a testa, acrescentando ao "foda-se" uma dimensão etérea e permitindo, deste modo, que a palavra se mantivesse implacável até no silêncio.

Quando Carlos Dias da Silva perguntou a Sílvio se «trocava a sua carreira pela vida do pai», houve um "foda-se" que se manifestou em todo o seu esplendor - não falo daquele na minha mente, mas antes do outro que, qual aparição, se iluminou na expressão genuína e pura do jogador. Creio que foi o "foda-se" mais bonito que vi em toda a minha vida.

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