quinta-feira, 28 de abril de 2011

Como o Leonard, seremos vencedores

Nos últimos tempos, tenho andado com o The Most Beautiful Woman in Town, do Bukowski. É boa leitura para as viagens de metro e para os tempos de espera. Mas tem um problema: gosto de andar sempre com o livro, o que só é possível se eu andar com mochila – a minha vida é complicada: com horários estranhos e fazendo contas ao imprevisível, trago sempre comigo um casaco, um caderno de apontamentos, um abre-cápsulas, duas esferográficas (por precaução), um cachecol, uma carteira de documentos, um envelope onde junto papelada para as finanças e um livro (ultimamente, o tal livro do Bukowski). Acontece que, nos jogos grandes, é muito difícil entrar no estádio com a mochila. A revista é demorada. Saio do trabalho à pressa e chego ao estádio em cima da hora, sem direito a paragem na roulote. E depois estou dez minutos a despejar e a revirar a mochila perante o olhar desconfiado de dois seguranças. Quando chega à parte do livro, estranham “você traz para aqui um livro?” e eu nunca percebo muito bem a estranheza: se lhes causa espanto associar leitura a futebol ou se lhes provoca preocupação a possibilidade de eu atirar uma encadernação em capa mole de duzentas e poucas páginas a partir de um lugar recôndito no terceiro anel. Pelo sim, pelo não, costumo dizer “não se preocupe, eu não o atiro aos jogadores, eles não sabem ler ah ah ah”. Nunca acham piada, enfim…

Decidi então não trazer a mochila em dias de jogos na Luz. É uma decisão que me custa, mas que faz sentido. Curiosamente, sinto-me descomprometido, como se estivesse de férias. A leveza de não ter coisas às costas é uma benesse que só experimento em tempos de desocupação e lazer (e, mesmo assim, nem sempre). Hoje, por exemplo, vim trabalhar como se fosse só ali beber um café, sem trazer “as coisas” comigo. Esta decisão de não trazer mochila em dias de jogo acarreta várias pequenas contrariedades. A maior das quais, claro, é não ter onde guardar o cachecol nem o livro. Obriga-me a organizar e seleccionar os objectos essenciais e indispensáveis para os trazer comigo. Este exercício de selecção deve levar em consideração apenas dois critérios: a portabilidade do objecto e o meu apreço pelo mesmo. E esbarro sempre no livro. O livro não é – estranhamente, diga-se – portátil: não poderia entrar no estádio com um livro na mão. O casaco e o cachecol resolvem-se com facilidade: visto um, ponho o outro pelos ombros e está feito. Mas o livro tem de ficar no meu trabalho, na minha secretária. O que implica que, no dia seguinte, eu não possa trazê-lo comigo quando for apanhar o metro a Santa Apolónia. Isto pode parecer uma questão menor, mas não é. Os tempos mortos nos transportes públicos desmotivam as pessoas, que eu bem vejo. A leitura é o grande escape à realidade deprimente de quem passa 30% da sua vida a esperar por coisas.
Toda esta situação levou-me a criar um sistema alternativo, a bem da minha sanidade mental e de uma certa coerência. Assim, em dias de jogo, não trago mochila e trago outro livro qualquer, que não seja o que ando a ler no momento. Não me custa, ao fim do dia, antes da debanda, abandoná-lo à sorte de uma gaveta de escritório. Não me custa porque não o conheço, li-lhe uma dúzia de páginas no próprio dia, não lhe tenho afecto. Encaro tudo isto como uma espécie de folga que dou, no caso, ao Bukowski. Hoje o Bukowsi está de folga porque joga o Benfica, pronto. É simples.

A semana passada, antes do Benfica – Porto, pus-me a olhar para a estante em busca de um livro que fosse fininho. Deparei-me com A Carta ao Pai, do Kafka. E até pensei comigo “ena, isto é completamente charmoso: cachecol do Benfica numa mão, Kafka na outra”. Pus-me a ler aquilo. É muito triste e angustiado. Muito deprimido. Quanto mais eu lia, mais insignificante e frágil me sentia. Logicamente, cheguei ao Estádio da Luz bastante desmoralizado. Quando o Júlio César defendeu aquela do Falcao, olhei para o ecrã gigante e li, alucinando, “Benfica 0 – Porto 1”, tal era a degradação do meu espírito. Quando o Porto fez o terceiro, senti-me impotente, incapaz de pontapear uma pedra do chão que fosse. Quando o Xistra assinalou penalty, primeiro não acreditei; a seguir, discordei da decisão; e, por fim, pensei sempre que o Cardozo ia falhar. Ele marcou e eu disse “oh isto já não dá tempo”. A Carta ao Pai ficou, nesse instante, fora do meu plano individual de leituras em dias de jogo. É uma situação muito estranha e desconfortável, isto de não ter fé nem esperança. Sobretudo quando se é Benfiquista – faz parte de nós acreditar sempre nas coisas, por exemplo, que o Benfica vai ser campeão europeu já para o ano. Eu acredito, na boa. Mas na quarta-feira passada não acreditava sequer que o Benfica eliminasse o Porto. E foi o que se viu.

Arrumada A Carta ao Pai, fui de novo à estante hoje de manhã. Mas desta vez não queria livros fininhos: para não deixar leituras a meio, para não me arriscar a depressões e para eliminar a possibilidade de remorsos futebolístico-literários, virei-me para a poesia. E se, anteriormente, fui desmoralizado por uma figurinha frágil, ridícula e desesperada como Kafka perante o seu pai, desta vez queria alguém potente, forte, confiante, glamouroso, positivo. Ou seja, o Leonard Cohen no seu Livro do Desejo. É pena pesar quase dois quilos. De resto, é uma maravilha. Curiosamente, assinalei uma passagem que tem o seu quê de inspiradora:

Demora-te bastante com a tua raiva,
dorminhoco.
Não a desperdices em motins.
Não a embaraces em ideias
.”

Não sei muito bem o que quer dizer, mas acho que é bom. E não sei se não será uma dica para o Carlos Martins – não rebentes logo com tudo, malandro; vai gerindo as bombas; não aleijes os adversários com pontapés; marca golos devagarinho, que também dá. Eu acho que é isto.

3 comentários:

Ricardo disse...

Isto é excelente. Em todas as rochas ao pé do mar em que podíamos deixar o isqueiro e o cigarro sempre que estávamos na praia e os pais não sabiam que nós não fumávamos. Se calhar, é pessoal, mas eu deixava o isqueiro e o cigarro numa rocha com 10.000 anos. Algo de arqueologia nisto.

A sério (diz-me muito isto, não diz?), a sério (outra vez?), a sério... tão bom.

Ricardo disse...

*nós FUMÁVAMOS (sem "não"). Esta está boa.

pitons na boca disse...

Uma solução era haver uma área de cacifos pequenos para os sócios, que pagaria um valor simbólico por mês. E para não dizerem que havia malta mais arruaceira que guardasse lá bombas, lança-rockets e bolas de berlim com recheio estragado - com o intuito de criar uma guerra com adeptos adversários - esses cacifos poderiam ser vistoriados (com a presença do sócio) quanto ao seu conteúdo, fosse ele o equipamento para o jogo (cachecol, t-shirt ou mesmo equipamento do clube), livros, almofadinha para a bola (que acho que já não existem, nestes novos estádios), etc e tal. :)