Marcar um golo provoca uma sensação difícil de descrever. É como uma transgressão à realidade. Estamos ali mas não estamos ali. A euforia, a adrenalina que dispara, a incredulidade “marquei mesmo?” que nos toldam, deixam-nos num limbo inatingível de qualquer outra forma. Marcar um golo é uma forma sublime de existir momentaneamente. É um apontamento sobre-humano impossível de guardar ou de cristalizar. Passados alguns segundos, tudo o que resta são escombros do golo: alegria, satisfação e pouco mais. Racionaliza-se, numera-se e passa à história. Porque o golo se perde nele próprio, no instante em que acontece, assim, “já está!” e é então, nesse momentozinho mínimo, que percebemos a nossa função cósmica: era mesmo isto, empurrar a bola lá para dentro.
Há, no entanto, uma outra sensação de elevado requinte no futebol. Não fará história como fazem os golos. Não faz disparar a adrenalina dessa maneira orgásmica. Não justifica a nossa existência perante o universo. Mas sabe bem como poucas outras coisas na vida. Sabe bem como comer as primeiras cerejas do ano deitado sobre a relva à sombra de um pinheiro, se me permitem a analogia bucólica. Trata-se, como hão-de ter depreendido, de passar a bola por baixo das pernas do adversário. Fazer a cueca, dar a ratada, meter uma coxinha. É arte com muito nomes, todos eles tão criativos, irónicos e provocadores quanto o executante do gesto, seja ele qual for, onde quer que seja.
Fazer a cueca é aquele gesto que exige do futebolista muito mais do que sentido prático, noção táctica ou apurada técnica. Fazer a cueca é um estado de alma. Requer descaramento e uma boa dose de snobismo. É necessário que o artista seja – e saiba que o é – superior ao adversário a humilhar. O gesto é doloroso para quem é vítima; e é quase embaraçoso para o herói que o realiza – fica sempre aquela sensação de “oh, meu Deus!, peço imensa desculpa… foi impulso”. Mas depois fica aquele sorriso malandro que dispensa palavras. Se marcar um golo é um orgasmo apaixonado, dar a ratada é claramente fruto de uma masturbação recreativa.
Nesta arte milenar – refiro-me à cueca, não à masturbação -, há um jogador dentro de cada equipa com acesso privilegiado ao espaço entre as pernas abertas dos adversários. É o mago, o distribuidor, o 10. É só escolhê-los. Eles vêm, eles caem. Naturalmente, a localização táctico-geográfica do 10 acresce-lhe responsabilidades: não basta “passar de régua e esquadro”; não chega que faça aberturas de 40 metros, que bata os cantos como ninguém que distribua jogo com apenas dois toques, que seja o rei das assistências. Isso é para os medianos, para os razoáveis. Os craques, os magos, os distintos “metem uma coxinha” sempre que podem. Sempre com classe. Para mostrar quem é mestre ali, para desmoralizar os adversários. Entristecendo-se o opositor, aproximamo-nos da nossa própria felicidade.
Quando eu pago bilhete para ir ao Estádio, não é apenas para ver o Benfica ganhar, para desfrutar do ambiente ou para sair de lá rouco de cantar o hino ou para ver voar a Vitória. Eu quero contemplar o mágico enquanto ele causa depressões aos adversários. E quero que estes saiam de campo pensativos, insistindo na ideia “se era para isto, mais valia ter ficado em casa”.
E é para isso que eu lá estarei logo ao fim da tarde, Pablo, Pablito Aimar.
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