quarta-feira, 22 de maio de 2013

Dois euros e setenta

Parámos em Sete Rios num semáforo que estava vermelho, passei o meu telefone à Lady Verde, disse-lhe «guarda isto, eu ligo-te quando estiver despachado» e saí do carro. Ela não percebeu o que se passava nem sabia o que ia acontecer, mas também não fez perguntas.

Desci à estação de metro, direcção Santa Apolónia. No cais oposto, dezenas de pessoas com cachecóis e camisolas do Benfica e eu, num impulso, quis mudar de direcção, ir com eles, juntar-me a eles, rumar ao Estádio. Mas não tinha telemóvel, não tinha como falar com o André e desmarcar tudo. Contive-me e segui o plano.

O caminho até aos Restauradores foi penoso: sem telefone, sem um livro, sem nada que me distraísse, vendo pessoas nas estações por que ia passando, no sentido oposto, vestidas de Encarnado, não me restava senão sentir remorsos, como se estivesse a abandoná-las no último momento.

Não cheguei logo ao destino que tinha em mente, saí à rua ainda na estação da Avenida, não aguentava mais a viagem. Desci o restante a pé. Havia algum movimento, as esplanadas estavam cheias. Entrei, por fim, num café nos Restauradores, perguntei pelas cervejas «é Super Bock» e eu «não tem outras?», «tenho Carlsberg: dois euros e setenta, quer?», «claro, dê-me uma». Dois euros e setenta por 25 centilitros de cerveja dinamarquesa. Eu posso pagar dois euros e setenta por isso. Da última vez que toquei em Super Bock, o Benfica empatou em casa com o Estoril. Eu era capaz de pagar 27 euros por um cálice de Carlsberg. Mal aviado.

Sentei-me na esplanada, sozinho, e esperei. Tínhamos marcado para as seis e um quarto. Fui bebendo devagar, ainda faltavam uns minutos. Na minha cabeça as palavras do empregado para um cliente aparentemente habitual, ao balcão, «vocês não limpam nada, nem a taça... o Guimarães faz-vos a folha». Dois euros e setenta. Dois euros e setenta. Dois euros e setenta e o André atrasado e a cerveja a chegar ao fim.

Enrolei um cigarro, acendi-o, levantei-me, caminhei para trás e para diante. A impaciência a tomar conta do assunto. O assunto, sempre presente. Para trás e para a frente, dando a volta à boca do metro «mas este gajo nunca mais chega?», eram quase seis e meia. Ao fundo, vejo o meu amigo David, baterista, com a tralha às costas. Cumprimentamo-nos e ele, a estranhar-me, «o que é que estás a fazer aqui?», o David não liga muito à bola, ele é mais jazz, ele é mais rock. Não tentei explicar, disse só «pá... estou numa espécie de... experiência espiritual». Recuou dois passos «tu vê lá no que te metes, meu... cuidado com essas merdas». «Não te preocupes, o pior que pode acontecer é... correr mal». Correu mal.

O André não chegava e já passava das seis e meia. Mais um cigarro enrolado, mais voltas para baixo e para cima, para a frente e para trás. Todo o português espera, em algum momento da sua vida, por um Dom Sebastião. Este era o meu momento e aquele filho da mãe sem horários era O Encoberto, já ia quase um quarto de hora sobre o primeiro apito de cada um dos jogos. De todos os lados, nem nevoeiro, nem Dom Sebastião: sol, sombra e gente de passagem.

Chega o André, entretanto, vem do lado do Rossio, vem de passo acelerado, vem com vontade de pedir desculpas e de dar justificações. Não temos tempo, «vamos mas é ali ao Pingo Doce buscar cerveja, senão não me aguento». Fomos, comprámos duas litrosas de Sagres, bem mornas, aparentemente deixaram de as ter frescas. Antes disso testámos a câmara, testámos o gravador de som. «Está tudo em ordem? Tem bateria que chegue?», perguntei. «Foi tudo acabado de carregar», respondeu ele.

Lembro-me de, na escola primária, a minha professora me ter falado duma experiência com ratos em gaiolas na Avenida da Liberdade. Pretendiam perceber se esta era muito poluída. Era. O monóxido de carbono matou os ratos em pouco mais de um hora. Lembro-me de ter lido coisas acerca de privação sensorial. Lembro-me de ter, em Maio de 2005, imaginado uma situação em que eu, de cachecol ao pescoço, me deslocaria ao Marquês à espera das primeiras buzinas, sem saber o resultado do Benfica no Bessa. Lembro-me de não ter concretizado essa ideia. No domingo concretizei-a. No domingo, quando tudo podia correr mal, quando o domingo tinha tudo para correr mal. Correu mal.

Filmámos a caminhada e gravámos as conversas, fomos subindo e filmando e falando e gravando e bebendo. Sentámo-nos num banco no início da Avenida razoavelmente próximo de uma esplanada. Uma banda tocava covers. Pink Floyd e Doors e outros clássicos. E, de repente, calam-se e o jogo surge em alto som, o da Luz, num ecrã grande. Fugimos rapidamente evitando a informação. Nós não podíamos saber o que se passava.

Subimos mais, com as mãos ocupadas com garrafas, câmara, gravador e cigarros acesos, cada um com as suas funções. Mais acima, outra esplanada, outro ecrã, outra vez o locutor aos berros com o Benfica. Tapei os ouvidos e corri, avenida acima. O André também correu, mas ainda ouviu qualquer coisa. «Não me digas nada, não quero saber nada. Não possa saber nada». Por mais que tentes fugir, a informação persegue-te. Tu não queres saber mas há sempre alguém que quer que saibas. «Vamos para o Parque, lá não há esplanadas nem televisões nem rádios». Fomos.

«Pá, preciso só de dar uma mija», «boa, a seguir vou eu». O Parque quase deserto permite que o processo decorra sem sobressaltos. «Foda-se, a câmara ficou sem bateria». «Guarda-se para o fim, para as primeiras buzinas». «Vou tentar com o telefone, faz aí uma claquete». «Merda, caralho... o gravador também está a ficar sem bateria... que se foda a claquete. Olha, isto é mau dizer foda-se e caralho? É sobre bola, no fundo...». «Não, é na boa». «Foda-se, caralho, foda-se, caralho, fod» «pode-se dizer... não é obrigatório», «ok, desculpa... foda-se, é dos nervos, caralho».

Sentámo-nos na relva, o sol descia, equilibrámos o telemóvel-câmara na mala da câmara-mesmo-câmara «ao menos, que sirva para alguma coisa». Serviu de pouco, aquela merda nem se equilibrava. «Ok, um filma o outro vai falando e vamo-nos revezando... tentamos aparecer os dois no plano». Pareceu-me um plano. Cerveja cada vez mais quente, nervos cada vez mais nervosos, o sol cada vez mais baixo, pardais a chegarem-se perto, sem vergonha nenhuma. «Bom presságio, bom presságio... são aves, são aves como a Águia Vitória».

Empatámos tempo como se fôssemos Ola Johns agarrados às canelas, cheios de esperanças, cheios da esperança possível, cheios com a esperança mais mínima e ridícula que alguém pode ter, sem esperança nenhuma mas com uma fé que não desarma, com conversas que envergonhariam qualquer surrealista puro. E ouviu-se a primeira buzina. «Olha... espera». E ouviu-se outra. E depois algum silêncio. E depois algum silêncio mais. E depois algum silêncio até às oito e vinte e eu disse «foda-se, caralho... aqueles cabrões ganharam esta merda outra vez. Nem sei para que é que ainda tenho esperanças». Pegámos nas coisas, começámos a descer. Quando atravessámos a estrada, junto ao Marquês, já havia meia-dúzia de eufóricos aos pés da estátua e uma dúzia de carros em torno dela, apitando, agitando bandeiras. «Que se foda. Anda, vamos comer uma bifana à Típica». Também comemos caracóis.

1 comentário:

Gustavo Bastos disse...

Como é que se arranca isto de nós? Não preciso de ser do Benfica mas preciso de ser quem sou. E não consigo ser de outra forma... E o vento que não muda! Já lá vão quase 30 anos!