quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

Esboço de ensaio sobre ir só ali ver a bola

Supondo que, precisamente à hora de um Benfica - Gil Vicente, vá, acontecia uma importantíssima Assembleia Geral da ONU: no momento em que a moeda fosse atirada ao ar a meio-campo, a minha preocupação seria somente esta: "espero que comecemos de Sul para Norte, caramba!". A questão "Será que a Palestina já é um Estado independente e reconhecido oficialmente pelos seus pares?" era coisa para me ocupar os pensamentos bastante mais tarde. Quem diz Assembleia Geral da ONU, diz Conselho de Estado em Belém ou reunião de emergência do BCE para rever as taxas de juro.

Esta suposição é uma falsa hipérbole: à luz do que é tido como razoável, a importância de um e de outro eventos não é comparável, sequer. No entanto, a verdade é que esta suposição é fidelíssima à realidade. E serve simplesmente para introduzir um texto sem falsos pudores nem hipocrisias de salão, um texto acerca da importância real do futebol enquanto elemento supostamente extra-real na minha vida.

No outro dia, falava eu com uma amiga – uma espécie de minha patroa da música – a propósito de umas quantas entrevistas recentes que dei relacionadas com música. E surpreendia-se ela, com certa indignação, «epá, em praticamente todas, têm de falar no Benfica, bolas!...» Por que razão há-de o Benfica ocupar um lugar tão importante na minha vida, a ponto de ser não só pertinente, como até relevante, num retrato que se quer para um músico? A conversa foi evoluindo até àquele ponto crítico: o futebol e a vida ou o comum mortal apaixonado por uma bola.

Pensei sobre o tema e as conclusões não podem ser definitivas – recolhi apenas pistas que agora tento organizar. Mas julgo que a generalidade das pessoas parte de um equívoco. Gente que nunca perdeu tempo a pensar seriamente sobre a vida, tende a julgar como acessórias determinadas actividades apenas porque dessas não depende directamente a existência. Concebeu-se uma sociedade em que o ser humano tem um papel tanto mais fundamental quanto a sua importância para, presume-se, a sobrevivência da espécie.

Ora, para começar, a sobrevivência da espécie é claramente sobrevalorizada. Isto é coisa passageira, amigos, uma gotinha de água, uma poeira. Daqui a 50 milhões de anos, não haverá sequer marca ou sinal da nossa há muito pretérita existência, exceptuando, talvez, uma ou outra ruína indecifrável: uma pedra de um resquício de uma ameia da Muralha da China, parte do esqueleto fossilizado do Luisão, a bancada Sagres do Estádio da Luz… Não mais que isto – e sei que estou a ser optimista, uma vez que a Grande Muralha já leva certa idade e muito desgaste de avanço. Pensem comigo: o que são 50 milhões de anos para todo o cosmos? Hum? Peanuts. Micro-peanuts, aliás. Nada. O que é que somos nós para tudo isto, para o todo, para o imenso, o infinito, o perpétuo?

A verdade é que nós somos só homens a fazer coisas, aqui e agora. Homens e mulheres a fazer coisas e a pensar em coisas durante um curto, efémero, ínfimo período de tempo. Tudo o que cremos ter importância é tão importante quanto a existência de pessoas a atribuir-lhe essa importância: as ideias, as memórias, os feitos - tudo existe apenas nas cabeças dos homens e das mulheres que aqui andam, a fazer coisas, a pensar em coisas, a gostar de coisas, a relembrar coisas. Quando não houver pessoas ou quando as pessoas deixaram de pensar nas coisas que outras pessoas fizeram, essas coisas, esses feitos, expiram – puff, evaporam, é como se nunca tivessem existido.

No entanto, as pessoas tendem a crer que os grandes feitos em áreas essenciais lhes concedem qualquer coisa ilusoriamente mais aproximada à imortalidade, ao eterno. Cuidais que a figura de Gengis Khan perdurará – isto, numa escala real e verdadeira: a astronómica? Ou a poesia de Homero ou a sabedoria de Aristóteles? O génio de Da Vinci, o rosto de Marilyn, as canções dos Beatles, a teoria da relatividade, a criação da vacina, a descoberta do fogo ou a invenção da roda – tudo efémero. O Cristianismo, o Budismo, o Hinduísmo, o Islamismo – tão perecíveis quanto o seu último crente. Os pontapés de Eusébio, as fintas de Maradona, o voo da águia, o terceiro anel ao rubro – apenas memórias de humanos, mortais, apaixonados pelo futebol.

E eu disse à minha amiga «ser do Benfica, ser do futebol, é ter uma fé imensa, é viver uma parte da minha vida com paixão pura, sem pedir em troca, sendo apenas devoto – é ser religioso». E ela estranhou. Considerou que eu exagerava. Mas eu não exagero. Exagerar é dar demasiada importância às coisas. Qualquer que seja a coisa. Não há imortalidade no futebol – pois não; tal como não há imortalidade em qualquer outra coisa: tudo finda, tudo expira. E diz-me ela «ah, mas e que te traz o futebol?». O futebol traz-me aquilo que Nietzsche – ele, como mais ninguém, percebeu isto – considerou ser a função primordial do homem neste mundo: o deleite. Que mais posso fazer eu neste universo imenso e implacável? Que tenho eu para acrescentar que seja perene ou relevante? Posso apenas ser feliz e tentar fazer feliz quem me é próximo. Tudo o resto são exageros. Enganos e exageros. Agora, posso ver a bola em paz?

24 comentários:

Constantino disse...

Diego,

Explicar o que é "sentir o Benfica" a hereges é das coisas mais desgastantes e desesperantes que se pode fazer e não é só porque os outros nunca vão entender, é mesmo porque é complicado de explicar. Por acaso a melhor descrição do que é o benfica, ouvia-a na semana passada da parte do falecido Socrates, quando ele se referia ao corinthians. Disse ele que o timão, para os seus adeptos é "uma voz"... filho da mãe roubou-nos o adjectivo.

(tentar explicar o que é o SLB é uma coisa tão horrivel que qualquer coisa que se tente escrever soa logo a disparate 5 segundos após o término da divagação).

Abraço.

Diego Armés disse...

Eu aqui nem vou ao "ser do Benfica"; tento mais mostrar que o futebol importa LEGITIMAMENTE. Não é uma alienação: é parte justamente fundamental da minha vida.

Ricardo disse...

Confesso que ao longo dos meus já vetustos 30 anos por várias vezes experienciei essa difícil mas quase sempre desafiante conversa em que tento explicar a um "culto" por que carga de água gosto de futebol. O culto, devidamente arranjado na sua barba por fazer - ainda que todos os dias deliciosamente aparada -, nos seus óculos aquadradados, no seu livrinho do Saul Bellow ou então, mais Louçã, do Gorki, e, claro, nos seus ténis da última geração (mais modernos que o próprio iphone e isto é difícil), o culto, dizia, enquadra-me numa espécie de redoma de atrasados mentais a que chama de "gajos estranhos". Chama-me assim porque não me compreende e vocifera alto a incompreensão! "Então mas tu, Ricardo, gostas de ler e de futebol"?, pergunta-me o culto, intrigado com tamanho oxímoro. "Tu pensas, Ricardo", diz-me elogiando-me não sei bem o quê e perscruta: "o que é que o futebol te pode dar?".

Às vezes é chato. Mas também é giro responder-lhes. E nem todos são assim. Só os cultos que não são bem cultos.

A mim o futebol dá-me a infantil crença de ser eterno. E a pueril emoção de fazer parte de um segredo muito grande que mais ninguém conhece.

POC disse...

Diego, foi fantástico, mas sabes que não conseguiste passar a mensagem, certo? :) Mas não te preocupes, ninguém consegue. Foi uma boa aproximação, no entanto.

E digamos que a puta da moeda dá-me arrepios. Quando no dérbi o Maxi perdeu e tivemos de atacar ao contrário cheguei a pensar no pior.

Bancada Sagres. Sempre.

http://simaoescuta.blogspot.com

Bimbosfera disse...

Grande texto, Diego, PQP!!!

Muito bom! E vou partilhar no meu mural de FB!!!

Grande abraço!

Márcio Guerra

P.s.- Os outros comentários são bons, mas o do Ricardo é também muito bom!

Éter disse...

"Então mas tu, Ricardo, gostas de ler e de futebol"?

Ricardo, a mesmíssima pergunta ouço várias vezes, com excepção do "Ricardo". Para as pessoas que perguntam parece que é o mesmo que ser vegetariano mas perder a cabeça por um bom naco de picanha.

pitons na boca disse...

Tb vou meter link para esta pagina no FB... não há mal nenhum em ter esperança de que a mensagem seja finalmente entendida (como se tal fosse possivel, para alguns).

Unknown disse...

Só faltou a referências são 22 gajos atrás de uma bola, ou é o futebol que te dá de comer, ou ainda tu é que te chateias mas eles é que ganham o dinheiro ... Sinceramente já não me assiste a paciência para explicar a quem não percebe, a única coisa que posso dizer é: um dia levo-te ao futebol ver um jogo com o estádio cheio e aí vais perceber ...
Para mim o Benfica é uma questão de sanidade e higiene mental

Unknown disse...

É verdade POC, não consigo comentar no teu site

Mr. Shankly disse...

Grande texto. Só discordo quando dizes que vai restar pouco da nossa civilização daqui a 50 milhões de anos. Os dinossauros desapareceram há 65 milhões e ainda há evidências. Há fósseis de bactérias com 3,5 biliões de anos, portanto acho que as nossas construções devem ser visíveis daqui a 50 milhões de anos.
Estou a divagar outra vez, e acho que estou a ser "aquele gajo" que pega num bocado sem importância para o significado do texto.

Adoro futebol, e nem sei porquê. Acho que às vezes é a única coisa que me traz, como dizes, deleite puro. Há pouco mais que me faça sentir em êxtase. E de facto, visto de fora, isto parece pateta, para alguém racional. Mas o que mais conheço são pessoas racionais que acham que houve um gajo que há dois mil anos ressuscitou, apesar de toda a evidência apontar no sentido contrário.
Em relação aos livros, o que não falta são intelectuais apaixonados pelo futebol: Cela, Camus...

Diego Armés disse...

Peço-vos que não me subestimem - nem a quem me interpelou. Não perderia (mais) tempo a justificar a compatibilidade entre "futebol" e "literacia". Aqui, a questão é mais profunda.

Diego Armés disse...

Shankly, eu disse 50? Bota mais um zero. Ou dois. É um pouco indiferente. Olha mete 18. Mil. Continua a ser poucochinho.

mago disse...

Epa, grande grande texto Diego. Devia tentar traduzir este post e explica-lo em australiano, "mate", mas para uma mentalidade que insiste em dizer que o "soccer" e para meninas nao consigo encontrar melhor corolario que aquele que o M. descreve no seu diario de um ultra (ja la vao quase 6 anos - ressuscita-o!) acerca de uma campa de um adepto napolitano dos anos 80 - Voces nao sabem o que perderam / perdem.

E agora que venha o marselha provar que nao ha duas sem tres.

Mr. Shankly disse...

Repito o meu pedido de desculpas. Fui um bocado conas.

Diego Armés disse...

Mago, desde que li o teu comentário, de quando em quando vem-me à cabeça essa frase. É extraordinária.

Vanda Noronha disse...

E agora tenho de defender a minha honra. Ai.

A bem da licença literária, só contaste a parte da conversa que te deu jeito. Acho que nem foi a propósito das entrevistas, mas sim sobre o facto que estavas lixado porque não ias ver o Benfica porque tinhas o teu concerto de lançamento (!) As minhas perguntas foram para além das que descreves, e foram movidas por genuino interesse e motivação em perceber a coisa. Para além de patroa da música sou também antropóloga, bolas.

A pergunta "ah, mas o que te traz o futebol?" foi feita no seguimento de descrevers a coisa como a fé inexplicável que se tem por Deus - na medida em que, como expliquei, falta a parte do sentido de protecção divina, de uma entidade que te ajuda nas dificuldades e que, com alguma sorte, te concede desejos.

Se esta ajuda é só em libertar stress, e os desejos são só o de ver o Benfica campeão é uma religião algo específica e um pouco limitada.

Expliquei que parecia mais a necessidade de integração que vem de pertencer a uma tribo, e a pergunta chave foi porquê _esta_ tribo. E não respondeste.

Já agora, estás despedido, o que é isto, vir falar da entidade patronal nas internets, olha que realmente.

Diego Armés disse...

A patroinha vai querer desculpar-me, mas essa coisa do "facto verídico" é, também ela, sobrevalorizada. A história é feita por quem a conta, não pela realidade dos factos - e crer no contrário é infantilidade.

Mas mais lhe digo, Sra. Scrooge, que, nesse dia, não soube responder-lhe a tudo precisamente porque tinha a cabeça ocupada com coisas urgentes, nomeadamente, o lançamento desse disco. De outra forma, teríamos tido uma conversa franca e profunda no decorrer da qual haveria de ter-lhe explicado o que é simples: o futebol não é religião; o fervor do adepto é, esse sim, semelhante ao da fé em Deus. E é só isto que defendo. O carácter religioso-mercantilista (dar a Deus pedindo em troca) não faz parte desta relação pura e casta na qual o adepto em troca daquele ÚNICO ponto que a shodôtora teimou em ignorar: o DELEITE colectivo e unânime. Certas vezes, esse deleite é transformado em extâse; noutras ocasiões, a contemplação resulta em desamparo catárctico. Tudo isto em nome de um símbolo, de um equipamento, de uma entidade que a patroínha jamais compreenderá e a qual me escuso a tentar explicar de novo.

No fundo, somos apenas homens e mulheres a fazer coisas, aqui e agora. Uma dessas coisas é ver a bola com paixão. Apenas isso. Nem sequer é muito metafísico.

Diego Armés disse...

Errata:

"relação pura e casta na qual o adepto SE ENTREEGA SEM RESERVAS em troca daquele ÚNICO ponto que a shodôtora teimou em ignorar: o deleite colectivo e unânime."

Faltava ali a parte em caixa alta. Foi um lapso, uma omissão involuntária. Resulta de escrever à pressa - daqui a bocadinho, vou para a Luz.

Mr. Shankly disse...

"facto verídico" não é uma tautologia (ou um pleonasmo, faço sempre confusão)?

Lá estou eu, porra.

Diego Armés disse...

Se estamos a falar de relatos, eu posso inventar factos para relatar, certo? É uma possibilidade. Logo, há a possibilidade de existirem factos inventados, ainda que seja uma expressão meramente retórica (já que, sendo inventados, a verdade é que os factos não existem). Podemos continuar. Tudo isto é uma espiral descendente. E se eu fiz este blogue de futebol foi para isto mesmo, para andarmos aqui a discutir pleonasmos e perspectivas existencialistas, relativismos baratos e, já cá faltava, a bela da tautologia.

Vanda Noronha disse...

Olhe, meu caro, deveria estar era contente que a sua patroa sentia mais DELEITE no lançamento do seu album que no jogo do Benfica.

Acrescentou a este Universo imenso e implacável uma obra que considero relevante, mais relevante que um jogo de futebol, para mim.

Diego Armés disse...

É uma perspectiva, uma opinião que só posso respeitar - e que nem sequer me dá jeito contrariar. Portanto, ficamos assim. Continuo despedido?

Vanda Noronha disse...

Não, vá - mas só porque é Natal.

POC disse...

Bcool973,

Porra, se a malta que me diz isso conseguisse mesmo comentar, a minha tasca se calhar ainda valia alguma coisa! Não entendo o que se passa. Diego, consegues ajudar? Sou novo nisto... Muita malta diz que não consegue comentar na minha chafarica.

Abraços,

http://simaoescuta.blogspot.com