quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

Nas palavras do Profeta

Por uma pouco verosímil mas muito feliz sucessão de acasos e coincidências, veio parar-me às mãos O Profeta Tricolor – Cem Anos de Fluminense, de Nelson Rodrigues. Antes de mais, há que agradecer e sublinhar a gentileza de quem, conhecendo o meu gosto pela literatura do futebol, fez questão de me enviar o livro. Recebi-o com enorme surpresa e ainda maior satisfação. Um abraço e tentarei ser breve na sua leitura, para que a devolução não demore. E aqui ficam, logo no ponto de partida, as minhas desculpas pelos cantos dobrados. Ao longo dos tempos, fui-me especializando nesta área do futebol: a marcação dos cantos.

O título do livro não diz muito, mas deixa antever o que lá vem dentro: uma reunião de crónicas desse “profeta” apaixonado pelo futebol – mas, alto!, primeiramente casado com o Fluminense. É charmoso no domínio da palavra, tem suavidade. Escreve sem pressa porque o golo pode esperar. O seu discurso exibe-se digno, escorreito, limpo, claro, bem elaborado, bem distribuído e, claro, apaixonado. Sem paixão o futebol não tem beleza.

Não tenho afinidade com o Fluminense. Nenhuma. No Brasil, existem poucos clubes com os quais tenho algum tipo de relação. Há, dos paulistas, o Santos, pelo nome e por Pelé, e a Portuguesa, por ser a lusa e ter resultado da fusão de associações portuguesas; dos cariocas, sempre me vi mais Flamengo, rubro-negro, a alma do Rio. Em miúdo, sempre que ouvia falar em “Flá-Flu”, nunca tinha dúvidas: era Flamengo. É, portanto, com alguma estranheza que leio, pela primeira vez, o relato das paixões de um adepto que tem em comum comigo apenas o facto de ser adepto apaixonado. Das leituras anteriores, havia sempre outro elemento a acrescentar a este – o clube, aquele treinador, o próprio universo do futebol inglês de 70 e 80. Algo que me era próximo. Neste caso, é como se tivesse ido assistir a um desafio ao estádio de um rival – mas um em que o meu clube não participasse. O mais impressionante é que recebi o livro há umas 20 horas e já vou na página 60.

Há uma passagem que li com especial prazer e regozijo. Diria mesmo deleite. Este derby, este Benfica – Sporting, tem sido muito mal tratado fora do campo. Foi tão bem disputado (é diferente de “bem jogado”), teve tanta alma, tanto querer, durante aqueles 90 minutos, e tem sido jogado com tão pouco brio por quem não toca na bola. Mudemos isso. Pela minha parte, farei tudo por me focar no que importa: a bola, as balizas, o jogo, a relva, os cânticos, os aplausos. O sonho do futebol naquele preciso momento em que é apenas futebol.

Vou transcrever a passagem a que fiz referência, com a vossa licença. Escreve Nelson Rodrigues, em reposta a um amigo que o provoca «vocês só sabem ganhar de um a zero?», depois de uma vitória do Tricolor (gostei tanto de saber que também são “pó-de-arroz”) por um a zero, lá está, sobre o grande rival Botafogo:

«(…) tudo valoriza o nosso feito. E eu quero aqui tirar o meu chapéu ao Botafogo. Muitos alvinegros saíram, de campo, amargurados. Mas sem razão, amigos, sem razão. A verdade é que o Botafogo teve uma bela atuação. No primeiro tempo, nós, tricolores, conseguimos uma regular preponderância. Depois, porém, a equipe de General Severiano fez uma força tremenda e o Fluminense teve que usar toda a sua potencialidade defensiva. Vencemos. Mas justiça se lhe faça: - embora derrotado, o Botafogo mostrou que tem um time considerável

E é assim que o “profeta” resume aquilo que eu gostaria de resumir em relação ao duelo de sábado. Foi uma vitória valorosa sobre um adversário valoroso. Houve homens em campo, leais, competitivos, desportistas. Lutou-se e jogou-se, houve esforço. Uns ganharam e outros perderam, mas todos tiveram mérito, honra e foram dignos, defendendo a camisola e o símbolo, mostrando que merecem vestir uma e ostentar o outro. A melhor sensação do mundo, quando é de futebol que se trata, será porventura aquela que se tem quando se vence com mérito; a segunda melhor, digo eu, será a que nos invade quando perdemos com honra, de consciência tranquila, aquela que vem e que, apesar da tristeza da hora, nos reconforta e anima, porque fomos dignos.

E era isso que eu queria dizer, porque é isso que me importa: estou grato a esta equipa do Sporting por ter valorizado, no relvado, a escassa – como diria o Nelson Rodrigues «somos humildes» - mas merecida e suada vitória do Benfica.

5 comentários:

ZeduViana disse...

O futebol entre adeptos devia ser tratado mais assim, com sensatez e humildade mas, ao mesmo tempo, as picardias também sabem muito bem quando se ganha. De qualquer forma tento sempre ter uma leitura mais objectiva dos duelos mas nem sempre é fácil, porque o coração também ajuda a dramatizar.

ZeduViana disse...

Ah! Quanto ao Brasil também não tinha grande relação com nenhum clube. Quando lá fui uns puxavam-me para o vasco outros para o flamengo. Acabei por escolher o botafogo (nunca o fluminense que é o sporting lá do sitio). Não sei bem porquê, mas é um clube que faz os adeptos sofrerem muito e como benfiquista senti uma certa "afinidade vintage"

Diego Armés disse...

Ó, caríssimo... mas este texto é inspirado pelo Orçamento para 2012. O seu cariz é absolutamente excepcional. Simplesmente, coincidiu eu achar que o derby foi demasiadamente espezinhado - e o jogo exageradamente ignorado - com a leitura desta passagem. senti-me então compelido a escrever um texto de paz e serenidade, de agradecimento pelo espectáculo, trazendo-o para o primeiro plano e remetendo o restante fait divers para a divisão das revistas cor-de-rosa. Não conto, contudo, que os adeptos deste blogue se habituem ao registo - a bonomia logo me passa. Também aprecio a boa rivalidade, rasgadinha. Sem isso, qual era a graça? Aliás, o próprio Nelson Rodrigues, sendo cavalheiro e desportista, fazia gala em ser teso. Portanto, não confundamos a bonança pontual - e justa - com uma regra que aqui nunca existiu.

Já do Botafogo conheço muito pouco. Mas sei que o Fluminense é olhado de lado no Rio. Historicamente, porém, foi "o primeiro grande". Mas como disse, não tenho qualquer afinidade com eles. Aliás, penso neles, e só me vem o Deco ou o Estrela da Amadora á cabeça. Acho que está tudo dito.

POC disse...

Dérbi é dérbi. E vice-versa.

http://simaoescuta.blogspot.com

Bimbosfera disse...

Muito bom! E fiquei a saber mais qualquer coisa, que há um Nelson Rodrigues no Brasil que é teso e gosta de bola! Parece-me ser boa leitura. Não andassem as finanças em baixo (quem não anda, acho eu) e seria um dos vários que considero (consideraria) comprar!

Abraço

Márcio Guerra