segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

Ontologia e Estética

Filosoficamente, foi uma jornada de nervos. Fui para o terceiro anel e, confesso, eu não era eu: fui a chamar-me Maria (se a Maria me estiver a ler: obrigado pelo bilhete). Ainda o apito inicial não tinha soado e já estávamos perante uma questão hamletiana mas em muitíssimo mais dramático ainda: a de ser mas não ser.

No bilhete diz “Maria no lugar 10 da fila L”. Sento-me no 9. «Ser mas não estar». O drama agrava-se, a trama adensa-se e, ainda por cima, não se vê bem: tenho o varão das escadas mesmo à minha frente. «Realmente, vê-se muito bem do terceiro anel, não haja dúvidas… pena os ferros, mas de resto, é incrível. Tem uma vista deslumbrante se conseguir olhar pelos intervalos dos obstáculos». Foi o Éter quem me trouxe o bilhete. «Eu não disse que se via bem, disse que se via bonito». Dito e feito: Matic marca de costas após assistência de Garay de cabeça, assistido por Aimar de divino e ungido pé direito. «Bonito!» digo eu.

O Ricardo está sentado nas escadas, «da posição 10, não vejo a ponta de um corno» e vem a piada de Estádio «e se o Jorge Sousa se puser em bicos de pés?». Nada como uma gargalhada alarve numa noite fria, a ver a bola e o Benfica a ganhar. Qual ganhar, aquilo não era ganhar, aquilo era desmotivar o adversário. “Ganhar” parecia assumido pelo próprio cosmos, restava saber por quantos e de que modo: à bruta? Com classe? À bombardeiro? À pressa?

Começa então o espectáculo de Aimar. Tenho a dizer que os números estão para Aimar como o Sporting está para o estatuto de “grande”: longe de lhe fazer jus. Exemplo: Gaitán tem muito mais assistências para golo do que Aimar. Como é que isso é possível? Fácil: Pablito oferece golos em quantidades tão absurdas que a displicência se apodera de quem os recebe. Neste jogo, em menos de 20 minutos, deu três golos: o do Garatic, um outro a Cardozo (poste) e ainda outro a Luisão (atraso ao guarda-redes adversário). Nos lances de Cardozo e de Luisão, deixou os colegas sozinhos, diante de um guarda-redes desprotegido e com uma margem de tempo para ensaiar o remate assinalável. Portanto, estas assistências deviam contar. Aimar não tem culpa que os colegas esbanjem o seu talento e a sua bênção.

«Eu não disse que daqui se via bonito?», «opá, bonito, bonito… era um hat-trick do Nolito». Mas sim, estava a ser bonito. Até que começou a ser extraordinariamente bonito. Por esta altura, Gaitán fazia com que os espiões dos 183 maiores clubes da Inglaterra riscassem todos os sinais de “menos” dos caderninhos de apontamentos, substituindo-os pela mensagem simples «Buy. Now!». Que obra de arte! Gaitán faz-me pensar que o futebol 11 podia ser mais como o futsal: podes entrar e depois sair e depois entrar outra vez. Assim, não se desperdiçava tanto tempo de jogo e metia-se o homem em campo só quando ele estivesse sorridente, retirando-o imediatamente a seguir à conclusão da jogada soberba que tinha acumulada nos pés, à espera de rebentar.

Nisto, o Nacional passa do meio-campo. «Filhadapuuuuta!» ouve-se pelo Estádio inteiro. Que coro de assobios! «Boooooooooooooooi» «ga-tu-no! Ga-tu-no!» «chuuuulo!». Olho para o Ricardo «é penalty claríssimo… é que é mesmo tão penalty…» e ele concorda. Completamente penalty, portanto. Os gritos de homenagem continuam «pa-lha-ço! pa-lha-ço! pa-lha-ço! pa-lha-ço!». Duas filas à frente «na telefonia diz que deixa dúvidas, mas que não parece». «Este gajo pá, nem um penalty consegue fazer como deve ser», indigna-se o Ricardo e, assim, acompanhamos a quase grande defesa de Artur que, neste jogo, era precisamente Artur. «Hoje é mesmo ele, sim senhora». Água na fervura ontológica: ser a ser e a estar, confere. Tudo em ordem naquela baliza, portanto.

Antes de chegarmos àqueles monumentais dez minutos que precederam o intervalo, recebo a dica no WhatsApp, «pessoal, está explicado: o André Almeida está a fazer um grande jogo porque é o Witsel». Novamente, o ser que não é. Pior: o ser a não ser e a não estar como deve ser: «o Witsel?! Então e o cabelo?». Tempestade filosófica no sector 6 da Sagres - «chega, preciso de uma cerveja», «só há sem álcool», «foda-se, mas nada aqui é o que parece?».

Nisto, uma quantidade incalculável de jogadores do ataque do Benfica tocam na bola com elegância, destreza, velocidade e alguma malvadez. Rodrigo faz o três a um e as nuvens da desidentidade tornam-se menos densas: não sabemos quem somos, mas sabemos que estamos bem, no bom caminho. «Este Rodrigo é praí… difícil de classificar, não?». «Diria que é ainda pior que isso». Intervalo, vaga um lugar, eu passo para o oito, o Ricardo fica com o nove, que era o meu. «Daqui só não vejo o que se passa na pequena área», diz ele com ânimo renovado. Eu também estou entusiasmado, não é só o jogo do Benfica que faz sentido, o meu novo lugar dá-me alento, o real parece alinhar-se com a expectativa: «isto começa a bater certo: número 8 sentado, confere» - e é nesse preciso momento que Bruno César se levanta para aquecer. «Desisto, não penso mais nestas merdas».

Na segunda parte Jorge Sousa vem disposto a mudar o mundo e a própria vida: «heia, caramba, qu’o homem ‘tá doido… até mostra cartões ao Nacional». O Éter dá «sinal mais para Jorge Sousa». «Hum, isto traz água no bico». O Ricardo não se engana: a partir desta altura, o Benfica é claramente espoliado. Por cada cartão amarelo, perderam-se sete a oito minutos de goleada potencialmente esmagadora. «Será que o homem toma nota dos números por extenso?», «nah, o gajo é perfeccionista, há quem diga que conseguiu as insígnias porque a FIFA ficou muito impressionada com a sua letra bonita».

9 comentários:

POC disse...

Tiveste azar com o ferro à frente. Que se vê melhor, vê!
E olha que estou triste por não terem decifrado logo o Axel. Eram terem pedido informação ao sector do lado...

(Pablo lá em cima é ainda mais Pablo!)

Éter disse...

Repara que eu estava sossegadamente no 8, na segunda parte passo para o 7 para o Ricardo não levar com o ferro e o Cardozo falha um penálti... Eu dou azar ao Cardozo no 7, meu caro. Para a próxima vais tu para lá ou então o Ricardo senta as nalgas no betão.

E mantenho que Jorge Sousa terá o caderninho de jogo mais bonito e aprumado dos árbitros portugueses.

Diogo disse...

Normalmente vou para o piso 3, sagres, pois dá para ver todas as movimentações como se devem ver. Tiveste azar com o ferro, aconteceu-me o mesmo no primeiro jogo na catedral, benfica vs beira-mar.
No sábado estive no piso 1, mesmo por cima dos diabos e vê-se muitissimo bem. No segundo golo deu vontade de saltar para cima do Gaitan e dar-lhe uns calduços. O meu pai disse que para o ano quer o Redpass ali mas na zona central, é doido o velho, mas vai avançar!
Abraço

João Duarte disse...

Bancada Sagres, sector 8 fila A.

Maravilhoso o que se vê de lá.
Ligeiramente para a direita, até permite adivinhar os fora de jogo.

O unico inconveniente é qdo vêm os cruzamentos mesmo junto à linha na baliza grande, do lado direito do nosso ataque. Mas até isso tem solução fácil, ou escorregas na cadeira para espreitar entre o ferro e o muro, ou te chegas à frente e aproveitas e bates para fazer estardalhaço no placard da Sagres.

Dali ninguem me tira. E o preço, para a qualidade do lugar, é bastante bom.

Só que há uns tipos atrás de mim...DEUS!! Cardozo não corre, Nelson Oliveira tá com tiques de vedeta, o Emerson é certinho, o Javi ja tá com a cabeça no Arsenal, o ARtur está com excesso de confiança, etc etc.

POC disse...

Piso 3, Sagres, Sector 6/7/8 allez. Melhores lugares do Estádio!

E eles ouvem-me na mesma!

Islander disse...

Deliciosa crónica, por favor não pares de as escrever. Estando numa ilha infelizmente não posso ir à catedral com a frequência que gostaria mas este ano ainda quero lá ir. De vez em quando lá posso desfrutar do futebol do Glorioso ao vivo mas sabe sempre a pouco e normalmente com muito nevoeiro, frio e pouca nota artística.

Ricardo disse...

Eu chamava-me Francisco. Acho que o POC também se chamava Francisco ou era o Éter? E éramos o mesmo Francisco, o que dava àquilo todo uma nova dinâmica, especialmente por causa da Maria, que era o Diego.

Uma nota sobre esta crónica: é tudo mentira. Advém da visão altamente distorcida que o Diego tem da realidade. Só sobre Pablo falou verdade. Mas não há forma de não falar verdade sobre Pablo.

Éter engana-se: diz "sentar as nalgas no betão" como se fosse mau, em vez de pensar em fazer o mesmo. Há lá coisa melhor do que recordar e homeagear o Estádio antigo recusando a cadeirinha paneleira e enfrentando as agruras nostálgicas de um cu no frio dos osssos do estádio? Ali festejei golo 1, golo 2, golo 3, atirei-me para cima de Éter e Diego (e de dois desconhecidos que foram apanhados no caminho) e aind apude fazer de líder de claque de Piso 3, numa demonstração de cânticos e apoio à equipa que várias pessoas acharam ser afronta e brindaram com leves mas dilacerantes comentários: "está a sentar, está a sentar". O clássico nos dias que correm.

Enfim, Diego compreendeu finalmente o que Pablo anda a fazer em campo. Mesmo com meio-varão à frente.

Hattori Hanzo disse...

Mais um belíssimo texto, Maria. Parabéns. E u acho que o pessoal não percebeu. Witsel jogando naquela posição com o cabelo assim só estava a homenagear o Nelson.
Ricardo também assisti ainda alguns jogos nas escadas do velhinho estádio. Bons velhos tempos.

Batalheiro disse...

Piso 3 claro, na central oposta à imprensa(não lhe chamarei nunca "bancada Nestlé" ou coisa parecida...) para mim o equivalente ao antigo Terceiro Anel.