sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

A história a quem a quiser contar

Em Alfama, bairro onde vivo, passam-se muitas coisas e de muitas maneiras. Por exemplo, nas traseiras de minha casa há dois pássaros numa gaiola que a vizinha deixa à janela – são uma espécie de papagaios pequeninos ou, se preferirem, periquitos grandalhões. Fartam-se de chilrear. Eu e eles já fizemos amizade: quando estou a estender a roupa, as cordas e as roldanas chiam, fazem aquele crriiiii crriiiii; os mini-papagaios, julgando que estou a falar com eles, respondem-me com entusiasmo. Todos eles são vaidade, piam piam piam, num diálogo de t-shirt para ali, chilreio para aqui. Quando termino, piam de saudade, implorando que volte. Então, lanço-lhes da janela um assobio que eles, claramente, identificam como “hum, cheira-me que este não é o gajo com quem estávamos a falar” e calam-se. Não consigo imitar o meu próprio estendal da roupa.

Lá em Alfama acontecem também outras coisas. Por exemplo, há um rapaz, homem ainda jovem, que é quezilento. É corno. Profundamente corno. Vindo do Norte – como faz questão de sublinhar em voz alta de cada vez que se envolve em disputas de garganta em plena via pública, mais concretamente, à porta do Tolan –, saiu-lhe em sorte casar com uma autóctone, mas uma autóctone bêbeda e fadada ao conhecimento íntimo de boa parte da população local masculina. Em suma, uma devassa, uma vadia. Uma cadela, nos vários sentidos do termo. De cada vez que a esposa lhe suja o matrimónio, é certinho que o homem arma escândalo na rua. Mas é escândalo que nunca passa disso: meia-hora, três quartos de hora de “eu fodo-vos a todos, TODOS! Eu não sou daqui, caralho, eu vim do Norte, não sou como estes paneleiros lisboetas! Comigo ninguém goza, puta que vos pariu!”. Isto, mais b menos v, numa algazarra que colhe respostas variadas, entre o sorriso piedoso, a indiferença conveniente ou o grito pontual de uma janela “e se fosses gritar prá cona da tua mãe, ó boi?”. Findo o espectáculo, volta para casa mais aliviado, suponho.

Acontecem muitas mais coisas em Alfama e mesmo estas duas coisas que relatei acontecem de maneira diferente daquela que conto – esta é apenas a minha versão. É legítima, não é mentirosa. No entanto, é curta: Alfama é muito mais que isto. Acontece que, quando, no Natal, conto as minhas histórias em família, naquele momento para lá do jantar em que a animação e um ou dois bushmíis já permitem o recurso ao vernáculo tabernista, desde que seja no registo “ó pai, não fui eu que disse, eu só estou a contar”, acabo por escolher estes dois assuntos. Entretêm e passam uma imagem do bairro que prolonga o mito do pitoresco, popular, feito de arruaça e detalhe castiço. Os meus pais sabem que Alfama não é só aquilo, mas gostam de imaginar Alfama assim, entre mini-papagaios apaixonados por um estendal da roupa e arruaceiros de língua quase tão afiada quanto as próprias armações de testa.

É com estes pequenos relatos, quase lendas, desprovidos de rigor, que se faz aquilo que é a minha história de Alfama. A história depende sempre de quem a escreve, de quem a conta, de quem a interpreta. Ficar na história não depende exclusivamente do actor ou agente, do contexto ou do acto: resulta, fundamentalmente, da vontade, do interesse e do talento de quem o há-de recordar no futuro. E é assim que heróis por nada se tornam ícones, anónimos se tornam mártires e génios se enterram na vala comum do esquecimento eterno, como se fossem iguais aos demais infelizes com quem partilham a cova. Quando os meus pais falam de mim à sua neta, contam a história dos mini-papagaios e do estendal; mas não falam, por exemplo, da imensidão da tarefa de recolher os sacos do lixo de porta em porta, noite após noite, no meio do cheiro do mijo, da cerveja velha, do camião que os transporta e dos próprios sacos que apanham do chão, numa das mais duras profissões urbanas que conheço. O mito é sempre mais gostoso de contar.

A um nível mais sério, a história legitima-se: assenta em factos concretos e documentados, socorre-se de números e datas e testemunhos. Em suma, preserva-se em papéis para poder ser lida e confirmada. Lida e interpretada. Interpretada e questionada. Eventualmente, reescrita. Com outras roupas e outros termos, na distância dos anos, das décadas e dos séculos, acaba por ter o mesmo final que as minhas histórias de Alfama – pois o homem, que nunca conseguirá conhecer em absoluto uma verdade, será sempre incapaz de gravar essa “uma verdade” como cicatriz no tempo. Por mais cadernos de anotações que uma história ocupe. A história é os seus intérpretes e mensageiros a contarem histórias.

Penso na história do Benfica e assusto-me ao observar como ela se esvai, afunilando daqui para a fundação. Os anos 2000 são agora mesmo, os 90’s são ainda há pouco. Dos 80’s, socorro-me de cadernetas de cromos e vídeos e recortes antigos. Dos 70’s falo com o meu pai, que me conta histórias, as suas histórias do seu Benfica, com os seus mitos legítimos. Dos anos 60 o meu pai não recorda tudo, mas o meu avô recordava. Além disso, os 60 têm mitos muito fortes. Quando não têm, vou à Wikipédia. E é na Wikipédia que encontro os 50 e os 40 e os 30… Quase 50 anos de história do meu clube resumidos em meia-dúzia de parágrafos, mil, duas mil, vá, que sejam dez mil palavras. Cinquenta anos de histórias e conquistas, de sacrifícios e glórias, de fazer filhos Benfiquistas e ganhar Voltas a Portugal. Cem mil palavras não chegariam, nunca, para contar esta história, todas essas histórias.

Ontem Pablo Aimar assinou por Nós. O mais nobre, digno e brilhante número 10 do Benfica de que me lembro – da minha história do Benfica, portanto –, aceitou privilegiar-nos a todos com o seu charme de bola e honrar-se a si mesmo com aquele Símbolo no peito por mais um ano. A minha felicidade foi genuína e comovida. Hoje, pensava em Aimar. Em como transmiti-lo aos meus filhos e aos meus netos. Em como garantir que os meus bisnetos o saibam de cor, como assegurar-me de que os meus trisnetos recordam como recebia uma bola lançada a 60 metros. Queria prometer a toda a minha descendência: “vocês vão saber quem foi Pablo Aimar, o que fazia e como o fazia”. Escrever-lhe uma história digna e perene. É o mínimo que posso fazer por ele e pelos meus que estão por vir.

Não quero que Aimar seja, daqui a 30 ou 40 ou 80 anos, uma pequena compilação de dados e factos e números e datas. Não quero que Pablito seja dez páginas de anotações numa sebenta, dez linhas discutíveis nem artigo da Wikipédia. Quero que ele seja história, com todos os detalhes a que um mito, uma lenda, tem direito.

Então, ocorreu-me uma ideia, provavelmente infantil, seguramente megalómana: criar uma história popular de Pablo Aimar. O plano, para quem o aceitar, é simples: escrever um texto sob o lema “o meu Pablito” ou, se preferirem e tiverem algum pudor, “como eu vejo Pablo Aimar”. Depois, juntávamos todos os textos…

22 comentários:

JC disse...

Vénia.
Vénia.
E mais vénia.

Luis Rosario disse...

Já está na minha TDL.

Publico no Céu e fica disponível para o livro "O nosso Pablito".

Akele abraço

POC disse...

Diego, podes contar comigo. Assim que possível, tentarei fazer algo.
Não serei o melhor, nem de perto nem de longe, mas tentarei dar algum tipo de contributo.

Vivo numa ânsia por causa de Pablo.
Perdoem-me os que acham Rui Costa isto e aquilo. Até pode ser. Mas Pablo não é o sucessor de Rui Costa. Pablo é como nós: maior que Portugal.

E vivo numa ânsia porque Pablo merece tudo o que o futebol pode dar. E provavelmente já não terá.
Mas Pablo merece sair pela porta grande, como talvez, nunca ninguém terá saído.
Eu quero que ele fique. Para sempre. Quero que jogue, para sempre. Ou até aos 40 anos. E depois seja dirigente. Seja qualquer coisa. Mas seja Benfica.

Mas eu quero, eu penso no momento em que ele irá. E quero, e preciso, que seja um momento único. Não para ele, mas para mim. Porque lhe devo isso.

Pablo é o melhor estrangeiro que já pisou estes relvados. Pablo é o melhor 10 de SEMPRE da história do nosso clube (D'Eusébio é um 10 lá para a frente), um dos melhores de sempre a nível mundial. Só quem tem uma imagem muito redutora do que é o verdadeiro futebol, poderá achar o contrário. Pablo é futebol. É cultura. É prazer. É honra. É alegria. É devoção. É orgulho, é muito orgulho.

Espero (e quero contribuir) que saibamos todos homenageá-lo quando o dia chegar. Quero estar no aeroporto, quero cantar o nosso hino, a sua música. Quero chorar. De tristeza, mas de alegria.

Feliz ou infelizmente o futebol é parte da minha vida. O Benfica é a minha companhia. Nunca me abandona. E eu, talvez infelizmente, vivo demais estas coisas.

Pablo, quero-te para sempre.


Eu disse infelizmente? Felizmente eu sinto o meu Benfica assim. O meu e o do Pablo.

http://simaoescuta.blogspot.com

Diego Armés disse...

Este comentário poderia perfeitamente fazer parte do teu contributo, POC. É que é um grande comentário.

POC disse...

@Diego Armés, pois, acabei por vir ler agora e acho que consegui passar alguma coisa. Não está bem estruturado nalguns pontos, mas saiu assim. Um dia podemos aproveitar e po-lo bem escrito. Guarda-o.

Fico verdadeiramente banana com Pablo. Porque é aquilo que o futebol devia ser. Fico dalguma forma emocionado, é uma merda, mas fico.

Se resolveres (ou resolvermos) ir para a frente com isto, lembra-te de mim, gostaria de fazer parte. Nem que seja a servir canecos aos que trabalharem nisto.

Para quem possa ter ficado melindrado, de forma alguma quis deixar D'Eusébio fora do pedestal. Posições diferentes. É o Rei.
Mas Pablo tem uma classe que mais ninguém tem. E muito poucos tiveram ou terão.

Abraço

Batalheiro disse...

Desafio aceite! Que ideia encantadora... até sou menino para começar um blogue só para lá enfiar a minha humilde contribuição.

A história do Aimar no Benfica nunca poderá ser apenas "189 jogos 24 golos" ou assim uma coisa... seria como resumir a Like a Rolling Stone a "4/4 C-Dm-Em-F-G" ou a Mona Lisa a "óleo sobre tela, o retrato de uma tipa qualquer do Séc.XVI"

Perdi a linha de raciocínio.

Diego Armés disse...

Caríssimos: o assunto é delicado. Peço-vos que respeitem o tema e que deixem comentários como este acima noutros textos mais apropriados. Este ficará aqui, para dar o exemplo. Os próximos serão apagados. Obrigado e compreendam, peço-vos.

André Leal disse...

Peço desde já desculpa pela liberdade tomada.

Apenas publiquei neste post dada a urgência da questão que levanto, já que o nosso Presidente referiu, em entrevista à RTP, que iria decidir acerca do assunto que refiro ainda este mês.

Mais uma vez as minhas desculpas, pelo que compreendo que o Diego apague o meu comentário anterior.

Saudações Benfiquistas!

Ricardo disse...

Como é óbvio, não me demito. Vamos embora que é tarde.

Um pequeno apontamento: isto emocionou-me.

Ricardo disse...

O POC já começou em grande. Aquilo já é um texto.

André, tranquilo, mas... façamos a devida homenagem ao Giordano. Essas coisas resolvem-se na Assembleia. Esta é na rua.

Tolan disse...

Estou nessa, abraço.

JC disse...

É a 3ª vez que visito este texto e palpita-me que a coisa não se fica por aqui.


(não fiques já todo vaidoso, até porque 3 dos 5 "interessante e fantástico" atribuídos são meus").

redjan disse...

On my way. Que ideia genial, necessária, à Benfica ! Voltarei com o texto. Redjan

André Leal disse...

Já escrevi isto no Mágico SLB e aqui repito:

O Pablo Aimar é um jogador que só agora consigo sentir como um enorme jogador. Saber já o sabia, agora sentir...

Claro que isto advém da minha incapacidade de avaliar o tipo de jogador que normalmente anda com o número 10 às costas. Já me tinha ocorrido o mesmo com o Rui Costa e ocorrer-me-á novamente no futuro.

Por isso, esta incapacidade faz com que eu não seja a pessoa indicada para prestar os melhores elogios a este Grande Jogador!

No entanto posso aqui dizer que, em primeiro lugar, senti, no jogo contra o Gil Vicente, que o jogo estava ganho mal o Aimar entrou, quando o jogo estava difícil e empatado a 1. Também não deixei de ficar surpreendido com a satisfação que me inundou mal soube que a sua renovação estava finalmente oficializada.

Por isso, Pablito, muito obrigado! Além do jogador e profissional que és, fizeste-me conseguir sentir aquilo que já sabia há muito.

boloposte disse...

Uma canção é que era. Uma canção.

Batalheiro disse...

Escrevi um texto! Não tinha onde o publicar por isso fiz um blogue:

http://estadiodaluz.wordpress.com/2012/02/10/pablo-aimar-visto-daqui/

Diego, apropriei-me da tua frase "todos os títulos são poucos" espero que não te importes...

Pedro Ribeiro disse...

É pá tenho todo o gosto em pagar-te uma cerveja ou uma coca-cola logo à tarde na Luz. Este texto é mesmo à filha da mãe. Bruto.

Pedro disse...

Gostava de ter o dom da escrita para escrever as palavras que Pablito merece.

João Tomaz disse...

Excelente ideia!

--//--

Daqui a 50 anos, os craques de agora estarão muito bem documentados em vídeo e com a vantagem das imagens estarem à disposição de qualquer um. É frustrante que não seja preciso recuar muito no tempo para que seja quase impossível ver imagens de grandes jogadores. Um exemplo mais ou menos recente: Chalana!

Luis Rosario disse...

Devia ter gravado a 1ª parte de ontem.

Seria ainda mais fácil escrever um tributo ao homem com estes 45 min na televisão em looping...

Aposto que o jogo de ontem fez chorar muito sportinguista

mago disse...

Tambem eu respondo "presente" a este desafio.

"Uma historia popular de Pablo Aimar"... Nao so' e' um bom titulo para o o livro que se impoe, como ate' rima para a cancao que o boloposte propoe.

Abraco, e vamos a isso.

Fehér 29 disse...

Para mim, como jovem que sou, Pablo Aimar é a maior referencia do futebol mundial. Ponto.

E fico triste quando penso que ele nao dura para sempre. Mas temos que aproveitar ao máximo enquanto o temos. Ele nao é so mais um jogador do Benfica. Ele é já um monstro sagrado do Glorioso.