sexta-feira, 4 de janeiro de 2013

Adelina

Tentei escrever sobre o assunto quando o assunto estava fresco. Acabei por preferir não o fazer. Teria sido indelicado. E indelicadeza seria coisa imperdoável para a minha avó Adelina.

No dia do velório, receei entrar na sala onde se encontrava o caixão. Sabia que, podendo ver-me, Adelina teria dito «ai, mas para que é essa barba, tão grande, a esconder uma cara tão bonita?», com um tom misto de meiguice e severidade, a impor respeito ao mesmo tempo que saúda e acolhe. A minha avó gostava de corrigir. Com bondade, com paciência e com velhice - mas gostava das coisas correctas e no seu sítio.

A minha avó Adelina morreu em ante-vésperas do Natal e o Natal foi, naturalmente, afectado pela tristeza da sua partida. Não pela tragédia nem pelo drama. Mas a tristeza permaneceu porque não podia ter sido de outra forma.

O Natal lá por casa é, já por si, menos efusivo na medida em que somos cada ano um pouco menos crianças, eu e o meu irmão. O Natal sem crianças é muito menos natalício. Este Natal tinha tudo para ser muito mais acabrunhado e sisudo. Tentando amenizar a situação, decidi eleger um novo infante e declarei unilateralmente a criancice do meu pai: ofereci-lhe um jogo de matraquilhos, daqueles de mesa - mas dos de madeira, não dos outros de plástico rasca. Curiosamente, é um Benfica - Estoril. Tratou-se de um acaso. Se não acreditam, depois publico as fotos. Mas a sério que não sabia como equipavam os jogadores que vinham dentro da caixa selada. Temi que fosse um Benfica - Sporting moderno, com jogadores partidos de um dos lados. Felizmente, tudo correu bem.

Os pequenos matraquilhos equilibraram a disposição e recuperaram algum do bom humor em falta. Na própria noite de Natal, montou-se a mesa e disputaram-se dois campeonatos quadrangulares. Por momentos, aligeirou-se o pensamento. E eu sei que a minha avó Adelina teria gostado de saber que assim foi. O Natal importava-lhe muito. O Natal, como todos os grandes símbolos e momentos da Cristandade. Era uma católica de fervor sincero, a minha avó. Aliás, é a esse fervor que devo parte do meu fundamento Benfiquista.

O meu avô Domingos, grande ateu e Benfiquista de alicerces na espinal medula, convivia com a minha avó, católica como já descrevi e Benfiquista por herança, com enorme facilidade: na casa do Quintal partilhava-se pacificamente o espaço para as ondas hertzianas - a telefonia era um objecto de enorme importância no quotidiano de um casal do campo nascido por volta de 1920. Se havia futebol, ouvia-se o relato; se a hora era de missa, ouvia-se a Renascença - cada coisa no seu sítio. Quando as transmissões se sobrepunham, o meu avô nem se atrevia a propor alteração à lei das prioridades da casa - pegava em mim e íamos para o pinhal ou para o campo do Gonçalvinhense, mesmo ao lado, ouvir o Benfica e dar pontapés na bola.

Estou grato à minha avó por tudo e por mais isto, este Benfiquismo que, graças à sua maneira de corrigir e de arrumar no sítio certo, ajudou a sedimentar. Sinto muitas saudades do seu chá Li-Kungo e das suas torradas em pão saloio cozido a lenha, a seguir à jogatana e ao relato.

5 comentários:

Ricardo disse...

Um abraço e um beijinho. E aquele obrigado.

António Maia disse...

Bom texto. Obrigado!
Viva o Benfica!

Unknown disse...

Que os ensinamentos da Avó Adelina, perdurem para sempre.

"Temi que fosse um Benfica - Sporting moderno, com jogadores partidos de um dos lados."

É bom ver que o bom humor continua aí.

Abraço

Luis Rosario disse...

Grande abraço e força para este 2013!

Portas e Travessas.sa disse...

Um elogio às Avós..é bonito.

Aminha Avó foi marcante...era Cruz Cristo.

Ai filho as vezes que lavei aquela camisola ficava rico - meu Avõ foi era jogador ragueby do Glorioso

Socio 17 mil e tal