Entrámos no expresso para o Algarve. Era o início de umas extenuantes 57 horas, durante as quais percorreríamos mais de 1500 quilómetros, entre Lisboa, Portimão, Elvas, Faro e Albufeira, para cima e para baixo, para cima de novo, para Norte, para Sul, para Este, de novo para Oeste. 57 horas e viagens acumuladas que, se fossem uma só, dariam para chegar à Riviera francesa.
Sentei-me e endireitei a camisa azul escuro. Não sou dado aos rigores do luto tradicional, mas o bom senso ainda me permite reconhecer que talvez o amarelo ou o encarnado não sejam cores adequadas à ocasião.
Lembro-me de ter arrumado certas ideias: visto sempre de encarnado em dias de jogo. Sábado era um dia depois do jogo. A notícia da tia chegou precisamente quarenta e cinco minutos depois do apito final. Toda a conjugação de tempos me fez sentir respeitado pelo cosmos, pela preciosa gestão dos minutos, das conveniências, dos confortos. Existia ali uma espécie de compensação pela dor e pela tristeza. Nunca será comparável a importância de um jogo de futebol à vida de um ente querido. Nunca pretendi sequer aproximar-me, nem vagamente, dessa ideia. Porém, estes pequenos confortos, estes detalhes, esta não sobreposição de eventos, acrescentam paz, alguma harmonia à situação. Apesar de toda a tristeza, apesar da perda, as coisas estão no lugar certo, tudo se cumpre com alguma lógica - foi isto que senti quando olhei para a camisa azul escuro, em vez da possível angústia que sentiria se tivesse havido conflito de interesses entre a t-shirt encarnada e a minha presença no velório.
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