Quem vê em Febre no Estádio um livro de futebol, está a ver tudo mal. Febre no Estádio é uma espécie de enciclopédia descritiva das paixões do autor, sempre ao ritmo dos jogos de futebol que o foram marcando - não necessariamente pelos jogos, em si, mas pelo momento em que aconteceram, pelo contexto que os rodeou, pelas ideias que geraram. Hornby disserta várias vezes sobre elementos da existência que transcendem em absoluto o fenómeno "futebol". Porém, como adepto fanático, mesmo obsessivo (é como o próprio se auto-intitula), toda a sua vida, desde a puberdade, gira em torno (ou no meio ou de mãos dadas) do futebol, em geral, e do "seu" Arsenal, em particular.
Depois de bem instalado - isto é, "bem" dentro do possível - no meu lugar no autocarro, peguei em Febre no Estádio, constatando, com alguma tristeza, que estava a umas escassas dezoito páginas do seu final. Não havia volta a dar: era um fim-de-semana de despedidas. Há objectos pelos (ou com os) quais desenvolvemos uma empatia especial. Tornam-se-nos caros, próximos, companheiros. Muito mais do que o ritual da sua leitura, Febre no Estádio ofereceu-me o seu ombro compreensivo, a sua visão clara e séria, sóbria e, no entanto, afectada, acerca de uma vida que teria tudo para ser normal, não fosse o facto de Highbury Park assumir, para Nick Hornby, uma maior importância do que a sua própria casa ou qualquer maternidade ou cemitério ou biblioteca ou parlamento do mundo. Highbury é "o sítio" (o livro é escrito em 1992, o Emirates Stadium não era, sequer, uma miragem).
Os quilómetros corriam debaixo de nós e apertava-se-me o estômago. Não sabia muito bem o que iríamos encontrar à chegada. Como estariam as pessoas - os filhos, os irmãos, os pais. Nestas circunstâncias, em que o stress é grande, a ansiedade aumenta e um determinado tipo de angústia nervosa e amedrontada se acumulam em nós, não é anormal ou obsceno que tenhamos ideias bastante parvas. Eu não sou excepção. A distância entre o autocarro e a capela onde se realizava o velório diminuía, as páginas escasseavam, os meus dedos tremiam a virar as páginas e eu recordava aquela passagem em que Hornby pensava, muito francamente, no que aconteceria se alguém que lhe é próximo morresse, por exemplo, a poucas horas de uma final da Taça dos Campeões Europeus em que o Arsenal participasse ou noutro jogo de importância extrema que envolvesse os "Gunners". Seria capaz de voltar as costas ao Arsenal? Que tipo de sensações essa "traição" produziria?
É óbvio que a família ou os amigos vêm sempre em primeiro. Mas não deixa de ser desconcertante - não me interpretem mal, isto é apenas franqueza íntima e nunca, mas nunca!, coloquei a hipótese de dar prioridade ao Benfica em detrimento de quem me é próximo - pensar no que teria eu sentido se, em vez de poder festejar, vibrando, o golo de Gaitán, em directo, estivesse em casa, em lágrimas, como vim a estar 45 minutos mais tarde. Não são tristezas comparáveis, não são perdas "do mesmo campeonato" (perdoem-me a metáfora barata). Mas teria sido ainda mais triste e angustiante, não tenho dúvidas.
"O futebol sempre foi muito importante para mim e veio a representar demasiadas coisas e sinto que já fui ver demasiados jogos e gastei dinheiro a mais e preocupei-me com o Arsenal quando devia ter-me preocupado com outra coisa qualquer e pedi demasiada indulgência dos amigos e da família." (p. 243)
"Espero que sejam tolerantes para com aqueles que descrevem um momento desportivo como o seu melhor de sempre. Não é por falta de imaginação nem por termos vidas triste e estéreis; é que a vida real é mais pálida, monótona e contém menos potencial de delírio inesperado." (p. 281)
Quando li a última palavra do livro, senti-me ainda mais sozinho.
6 comentários:
Excelente, Diego. Belíssimas palavras. Não li o livro. Ainda. Como não li vários livros que queria ler e que, por este ou outro motivo, vão passando suavemente para a galeria dos "a ler" e que provavelmente na sua maioria não serão lidos tal vai a longa espera que os atormenta. Vou comprá-lo. Ou então vou pedi-lo emprestado. Logo se vê.
Uma nota muito pessoal: no dia do funeral do meu Pai, há cerca de ano e meio, culminada a sessão tormentosa da retribuição do corpo à terra (retribuição, que é como quem diz, visto que acho que não nascemos do fundo de uma batata, mas enfim...), dirige-me a um restaurante, bebi (muito), comi (menos), fui para casa, bebi (muito) e esperei o Benfica-Marselha. Não, não é desrespeito - quem o disser, não compreende as particularidades da mente humana. Aquela foi a forma de eu encontrar, pelo menos por umas horas, um lugar último onde repousar. Antes da tormenta, que ainda hoje vive em mim. Bebi, muito, e vi o Benfica. A tristeza, naquela tarde, ainda em negação mas já com o sangue, o corpo e as veias a quererem explodir, anestesiou-se ao som e à visão dos jogadores do Benfica, enquanto despejava copos de whisky para que a dor adiasse a contacto com o meu corpo.
Quem entende o luto como uma profecia de boca fechada, cara triste e olhos no chão, terá a sua própria forma de encarar a vida - e a morte. Só peço que entendam que há quem cante, quem dance, quem vire minis em semelhante situação. E nenhuma, nenhuma, está escrita em documento oficial sobre como viver a morte alheia.
Não há leis para a dor.
Parece mto bom.
Tenho de ler isso.
Li o livro em inglês e passados uns tempos, por curiosidade, espreitei o de um amigo, em português. Há muita coisa "lost in translation", há expressões brutais tipicamente "british" que não têm piada nenhuma em português.
É mais grave que isso, Éter. A versão portuguesa (a que li, pelo menos) obriga a um esforço constante de retroversão, já que há coisas ininteligíveis. A tradutora percebe tanto de terminologia futebolística como eu culinária togolesa. Ficas, página após página, com a sensação de que estás a perder coisas, ideias, palavras, expressões eventualmente brilhantes. Há passagens que aqui cito que foram retocadas por mim - sem pedir licença a ninguém nem nada, assim à bruta.
Tens que o apreciar como deve ser, então. Vale a pena, acredita. Não sei se será fácil encontrá-lo numa livraria em inglês, mas podes encomendar na Amazon ou noutro site do género.
O caso já está tratado e, dentro de um ou dois meses, terei o prazer de o ler na sua forma original. Obrigado.
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