quinta-feira, 22 de março de 2012

A caminhada

O sol está agradável mas a caminhada é demasiado longa. Quarenta e três minutos a pé. Sem Fante, sem xadrez. Hoje não é dia de ler nem de pensar. Hoje é dia de caminhar. Atravessar meia Lisboa sem metro, sem autocarros. Há greve em todo o lado. A greve é geral, o povo é quem mais ordena. O Diego quer ler mas não lê, o Diego que se lixe, o Diego que vá a pé, o Diego que tonifique os gémeos. Atravessa-se a Baixa e parece que o mundo está de férias. Estrangeiros a fazer turismo, excursionistas da CGTP a fazer mais ou menos o mesmo. É bom para o negócio. É bom para os pedintes. É bom para os ciganos a vender xámon e óculos de sol. Pena o faquir não estar aqui, esta malta revolucionária ia adorar.

Vejo-os de bandeirinhas e t-shirts alusivas, bonés e óculos escuros, lancheiras e copos de plástico, sentados ao sol, estendidos ao sol, arrebanhados ao sol. Estão a manifestar-se e a fazer greve. Estão a lutar pelos direitos das pessoas, dos trabalhadores. Todos os meses fazem isto e têm-se dado bem com o tempo. Por eles, estávamos todos cheios de direitos. Era direitos a transbordar. Eu tenho o direito de ir pé! Eu vou a pé! Obrigado, CGTP. Atravesso o Rossio pelo meio deles e sinto vontade de pegar no megafone e «EU PAGO 29 EUROS DE PASSE E TENHO DE ANDAR 4 QUILÓMETROS A PÉ PARA IR TRABALHAR, CARALHO! E É SEMPRE A SUBIR…» mas acobardo-me, eles são muitos e estão revoltados. Compreende-se a revolta. Aprecie-se o ritual. Aceite-se a greve, a manifestação e a caminhada. Encare-se tudo com espírito cívico e um sorriso no rosto. Uso o truque: penso «viva o Benfica!» e animo-me. Sorriso na cara, automático.

Estão todos a fazer greve, a defender os direitos de todos os trabalhadores, os direitos de todo o proletariado. Menos dos jornalistas. Os jornalistas, esses, estão a trabalhar para cobrir a greve. Há jornalistas que pagaram do próprio bolso para irem trabalhar. Foram de táxi, à burguês. Para fazer da greve notícia. Outros foram trabalhar a pé. Se os jornalistas fizessem greve, todos eles, como seria amanhã? Sem jornais a dizer o quão grandiosas e poderosas e furiosas foram a greve e a manifestação. «Sempre houve greve ontem?» «ah, não sei, não há notícias e eu ontem nem saí de casa, meti o dia para não mo descontarem, aproveitei que ia ser greve». Ao ritmo a que as fazem, um dia as greves deixarão de ser notícia. Quando esse dia chegar, também os jornalistas poderão fazer greve. Ninguém quererá saber, de qualquer modo.

Nos degraus do Dona Maria, uma pequena tribo de grevistas equipa a rigor: boné vermelho, t-shirt vermelha, bandeira vermelha. Tudo vermelho. Se eu fosse de uma central sindical, seria da CGTP. Equipam com bom gosto. CGTP! CGTP! CGTP! Vermelho é vermelho, seja no Rossio ou na Luz. Pela rua, há mais bandeiras vermelhas e outras pretas. Prefiro as vermelhas. Um dos homens sentados nos degraus tem a edição Norte do jornal O Jogo. “Fazem bloqueios sim senhor” diz a manchete. No quiosque mais próximo só existe a edição Sul “Mais letal que nunca” – a capa é o Tacuara de costas a festejar um golo. Os “bloqueios” são remetidos para um canto da página. Como que envergonhados. Pudera.

1 comentário:

Ricardo disse...

Sublime. Ou quase sublime, que ultimamente os "sublimes" têm sido dados como sardinhas, "que me sabem como beijos", como diz o fado varina.


Mesmo trajando a rigor e bom gosto, detesto os sindicalistas. É raça que me põe o coração-castanha a latejar.

Desde que uma vez, em trânsito Lisboa-São Paulo, no autocarro que me transportava para o avião, ouvi a João Proença (não trajado a Benfica, mas de calções caqui e camisa turística) isto: "É a 10ª vez este ano que vou ao Brasil", dizia o sindicalista, todo lampeiro. Imagino que os direitos dos trabalhadores peçam esse sacrifício ao pobre Proença. E, tal como o outro do gel no cabelo e cartão de sócio do Benfica, tem aquele arzinho de filho da puta.

Vais a pé que te fodes. Tudo pelo bem da democracia, pois então.