terça-feira, 13 de março de 2012

Pequeno prevenido

-Oh, não! Pequeno Vermelho! O que é que tu estás a fazer?!
-Master… não te ouvi entrar.
-Porque pairo sobre o planeta como uma raia se move rente ao fundo dos oceanos. Sai já de cima desse banco! E larga essa gilete, imediatamente! Mas o que é que tu pensas que estás a fazer?
-Parece-me bastante evidente, querido Master, que faço a barba.
-A tua insolência serve apenas para agravar os meus nervos. Mas QUAL barba, minha parcela infinitesimal de Glorioso Espírito? Qual barba, criaturinha encarnada e imberbe?
-Inspirado pela tua experiência que, apesar de desastrosa, me trouxe inspiração, tomei uma decisão: também eu quero, um dia, conhecer o Senhor Coluna e, para tal, achei por bem fazer a barba preventivamente.
-Oh Mãe de Eusébio…
-Desfazer a barba preventivamente. Nunca percebo: fazer ou desfazer a barba?
-É um interessante preciosismo esse teu, personagem minúscula. Porém, neste momento, vais lavar essa cara e tirar todo esse creme do rosto. Que insanidade…
-Quem faz a barba é o meu organismo, impulsionado pelo meu espírito; eu desfaço-a. Ou não?
-Não desfazes coisa alguma, Pequeno Vermelho. O teu rosto tem menos pêlos do que a casca de um pêssego careca.

5 comentários:

Filipe Araújo disse...

Pequeno prevenido vale por dois! :-)

Não o deixaste desfazer a barba (que não tinha), mas desfizeste-lhe a ilusão!...

ab

Hugo disse...

Sídrome da adolescência que estará para breve...

Pelo menos ele tem pressa:)

Vareta disse...

O texto levanta uma petinentíssima questão não futebolística - o da contaminação do significante pelo significado. Com efeito, uma frase como "O teu rosto tem menos pêlos do que a casca de um pêssego careca.", quando usada para descrever/escarnecer da ausência de pilosidades faciais em crianças pré-púberes, não deixa de estar contaminada por imagens de "sedução" (vd. Gilles Lipovetsky) e sensualidade que tornam esta situação linguística verdadeiramente paradoxal: como é que se pode descrever de forma 'terna e inocente' a infância quando o vocabulário 'terno e inocente' está contaminado pela quase omnipresença da sedução? Da mesma forma, como é que um adulto explica "eu estava a ver a Pipi das Meias Altas porque acho graça", ao mesmo tempo que os receptores da mensagem só atentarão nas saias e nos calções tão curtinhos? A hipermodernindade leva-nos a uma paranóia do discurso. Mais uma vez, a frase "O teu rosto tem menos pêlos do que a casca de um pêssego careca." é em si mesma puramente descritiva - mas pode-se ser "puramente" descritivo, hoje em dia? Não o seria menos se tivesses dito ao Pequeno Vermelho: "As tuas mão são pequenas e delicadas... mesmo boas para o fisting." - é a falta de uma identidade colectiva que leva a a esta retracção do campo lexicográfico a uma infinitude de campos de minas individuais.

Quanto ao fazer/desfazer, a questão é potencialmente pertinente também ao nível do verbo não-reflexivo: barbeio-me ou desbarbeio-me? E é um pulinho daí ao substantivo: será ele um barbeiro, um desbarbeiro, um apara-barbas, um corta-pelos? Obrigado pelo contributo; é sempre bom repensar a linguagem.

Maria Flausina disse...

Como diria outro sportinguista: "ganhou-se em correcção sintática, perdeu-se em chavascal"...

JC disse...

AHAHAHAHAHAHAHAH!!! Saudades de ler os devaneios do Vareta!

Grande abraço, pá! :))