quinta-feira, 1 de março de 2012

Dia #2

Aproveitei para caminhar e fi-lo com satisfação e parcimónia ao longo da Avenida da Boavista. O velho Bessa ficara para trás e a monumental Casa da Música, essa gigantesca pedra num charco de betão, erguia-se ao fundo como um destino. Mais à frente, a mais feia e falsa estátua do plantea - que me recuso, por pudor, a descrever.

Na Baixa, encontrei-me com um bom amigo. Homem do Sul, conserva ainda o sotaque algarvio, mesmo depois de meses de exposição ao apetitoso tornear das palavras ao jeito do Porto. Falam como se esculpissem curvas suaves no português. As pontas das sílabas transformam-se em anéis soltos de longos cabelos encaracolados.

Ouvir o traço forte algarvio sossegou-me: na noite anterior houve uma revelação que me abalou. "Vocês em Lisboa têm sotaque". Disseram-mo sem maldade, mas também sem meiguice. Não me insurgi, porém ainda me custa aceitar esta nova percepção. Assim, o falar algarvio reconfortou-me devolvendo-me a impressão de que falo de modo neutro e imaculado.

Descemos à Ribeira e pedi "um fino, por favor", ocultando assim a minha procedência. O empregado, brasileiro, respondeu com indiferença "imperial não tem, só tem príncipe, pode ser?". Com desapontamento, disse que sim, pode ser.

À mesa falámos de música, de concertos e de discos. Ele, sportinguista sem gosto pelo futebol, ainda perguntou com simpatia "então e não vais ver o jogo amanhã?" mas não creio que o interesse fosse genuíno. Tratou-se de uma pequena gentileza. "Vou, claro. Já está tudo programado".

De um canto da esplanada, uma jovem universitária levantou-se de entre os seus pares e dirigiu-se a nós. Estou a fumar mas preparo automaticamente a resposta "não tenho, não fumo". "Peço desculpa" diz com educação "tu não és o Diego Armés?". E eu sou, sim, sou mesmo e estou surpreendido por isso. "Adoro o teu trabalho, adoro". A sensação é semelhante à do golo: um espanto feliz anula-me o raciocínio e respondo como posso - com um sorriso trapalhão. Este pequeno gesto de corajosa gentileza faz o dia valer a pena. E é então que o momento se imortaliza: "grande Benfiquista! Também sou" exclama com visível orgulho. "Amanhã damos cabo deles".

Foi-se embora e começou a chover.

8 comentários:

Meneldor disse...

A estátua a que te referes é, sem dúvida, das coisas mais feias que existem. Até porque não é verdade. ;)

Em relação ao sotaque, lamento desiludir-te mas, sim, vocês lisboetas também têm sotaque. Não sei se tens ou não, generaliza-se. Eu, não sou do Porto mas relativamente perto e não tenho o sotaque portuense (esse de que falas) embora se note que sou do norte. :)
Tudo na boa. Isto dos sotaques só enriquece a nossa língua.

Enorme miúda!
O número de benfiquistas no Porto andará muito próximo de portistas.

Carrega Benfica!

Bruno Pereira disse...

Também estou em Leiria em trabalho, mas também já tenho tudo programado para bem antes da hora do jogo chegar à Catedral para o estágio e respetivo jogo. Muito boa a história ;)
Abraço,
Bruno Pereira

http://orgulhosamentelampiao.blogspot.com

Dylan disse...

Essa "feia e falsa estátua do planeta" já foi palco de inúmeros festejos do nosso Benfica, já foi Reserbada noutras ocasiões, e, se Deus quiser, tornará a sê-lo brevemente...

[A chuva foi muito pouca]

Rosana disse...

A tarde começou na Ribeira. Escolhemos o Cubo sem critério aparente. A tarde estava calma, boa companhia, sol, risadas e boa conversa. O tempo ia passando sem darmos por ele, e entretanto, o céu já tinha mudado de cor.
“Vai chover” - diz o brasileiro para o empregado da esplanada ao lado.
Olhei o rio como que em jeito de despedida mas, estranhamente, a mesa em frente prendeu-me a atenção. “ Não Rosana, estás a sonhar”, pensei. Discretamente voltei a olhar. “Não, é mesmo o Diego, não posso estar tão enganada.” Comentei com os amigos, tentando libertar-me de algum indício de histeria: “O Diego dos Feromona, o génio das palavras e portador de um benfiquismo quase tão doentio como o meu, aqui mesmo ao meu lado. E ele tem um concerto por estes dias na cidade, seria muita coincidência. Não posso ir embora sem lhe dizer o quanto adoro o seu trabalho e que amanhã vamos dar cabo deles!”

Enquanto subia em direcção a S. Bento, pensava: “Ele estava acompanhado, ignorei completamente o seu amigo. Certamente, sabe quem tem ao seu lado. Vai compreender”.

As nuvens não enganaram o brasileiro, começou a chover.

Foi um prazer, Diego.
Rosana.

mago disse...

O melhor duo "post + comentario".

Rosana, Benfica & Diego FTW!

Luis Rosario disse...

Uau, granda troca.

Rosana, se amanhã à tarde fores à Fnac ouvir o homem manda-lhe um cachecol do Benfica, para dar ainda mais sentido à "Canção Sentimental".

Ricardo disse...

Isto é poesia.

Rosana, Diego, brasileiro, Benfica.

Obrigado a todos.

lawrence disse...

Caramba, a mim só me calhou um "manhoco" que queria ir para Meca e não tinha guito para a gasolina.
Já é o segundo em dois dias!
É técnica!