segunda-feira, 12 de março de 2012

O sol e as barbas

O sol da tarde no Estádio da Luz é diferente de todos os outros. É um sol que já lá está há muitos anos. Que me lembre, sempre ali esteve e quando ali regresso é como se regressasse à velha casa da família. A casa mudou, é mais moderna. Mas também é menos arejada e ainda tem pouca história. Na outra, apanhava-se mais sol e tudo era maior, principalmente o passado. Sinto saudades.

Falávamos disto enquanto olhávamos para os miúdos de dez anos, cheios de talento, cheios de sonhos, cheios de potencial, cheios de futuro pela frente, pequenos abençoados com a sorte de jogar à bola ao sábado à tarde na Luz, com a camisola do Benfica. Ao mesmo tempo, lá dentro, Velhas Glórias do clube aturavam-nos com pachorra e entusiasmo. Vivemos nisto, um pé nas expectativas, o outro nas memórias.

Vamos tendo menos dias pela frente à medida que vamos ganhando novas histórias para contar. Gosto de imaginar graficamente a minha vida e aquele ponto máximo antes da curva descendente: o dia em que terei exactamente os mesmos minutos de recordações e de tempo de vida. No momento seguinte, já não terei tempo para contar todas as histórias que guardo. E a seguir a esse momento terei mais história e menos tempo. E por aí fora, até estar cheio de histórias não ter tempo para as contar.

Os Senhores com quem estivemos têm muitas histórias. Pela ordem natural das coisas, já não têm tempo para contá-las a todas. E sabem disso. É, portanto, com admiração e uma saudável mágoa que ouço Rogério Pipi contar todas as histórias que pode, como se quisesse oferecê-las, esbanjá-las, espalhá-las pelos seus netos. Com urgência, porém sem pressas. Há heranças que não se deixam em testamento e detalhes que não aparecem nas entrevistas. Temos de nos sentar e escutar, guardando com muito cuidado todas as palavras ouvidas. São o nosso património. Mais do que os Estádios, as televisões, as estátuas ou até mesmo os troféus, o Benfiquismo alimenta-se das suas memórias relatadas pelos seus protagonistas. O lado familiar sobrepõe-se à instituição clubística.

O meu avô Evaristo – «estás pobre? Precisas que te ofereça uma gilete?», quando lhe aparecia à porta com esta barba vadia -, esse precioso sportinguista de ódios infinitos pelo meu Amor de sempre, que me perdoe, mas voltar à Luz numa tarde de sol, ouvir o Senhor Coluna, José Augusto ou Artur Santos foi chegar a casa depois de uma longa ausência e abraçar todos os meus avós. Não estou geograficamente longe da minha família, mas disperso-me pela minha vida muito mais do que devia. Sinto, por isso, um grande conforto, de uma maneira muito infantil, quando o Senhor Coluna, mirando-me com familiar e autoritária reprovação, me diz precisamente isto: «eu, para ti, tenho um presente... uma gilete».

4 comentários:

mago disse...

Que tertulias sao essas que estou a perder por estar "geograficamente longe da(s) minha(s) familia(s)"?

Nao admito ir ai' em Setembro e nao poder presenciar algo semelhante.

E que comentario do Senhor Coluna... Nada a dizer.

Cheers.

Luis Rosario disse...

São estas coisas, vá lá perceber-se porquê, que enchem o nosso coração.

De vez em quando vou almoçar com o sócio 124 do nosso clube e a minha familia acha estranho eu só falar com o Mário e pedir-lhe para contar histórias sobre o Benfica.

Imagino se o meu entusiasmo é grande com um Mário sócio de 75 anos de clube, como será ouvir o Monstro Mário a contar as histórias na primeira pessoa.

Maria Flausina disse...

É por estas e por outras que aqui (só aqui e durante escassos minutos) o meu coração é vermelho!

Ricardo disse...

Mago, quem não admite sou eu. Quando vieres, farei de tudo para que estejas presente numa coisinha boa como esta foi. Que dia, meu santo Rogério Pipi. Que dia. E ainda apanhámos o Ricardinho por acaso, como extra. Cheers.

Rosário, já era altura de o Éter tratar de ti como mereces. Dar-lhe-ei palavrinhas nesse sentido.

Flausina, o coração é SEMPRE vermelho. Nem que seja por questões sanguíneas e quejandos.

Sinto falta do anónimo.


TIRA A MERDA DAS LETRAS!!!!!